sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A vida fora da vida

Quase sem querer, terminei 2010 encantado pelo Retrato do artista quando jovem, do James Joyce. A princípio, era apenas uma curiosidade literária, passatempo fútil nesses tempos de desânimo em relação à tese. Eu queria conhecer o contexto da frase que Clarice colocou como epígrafe de seu livro:

"Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida."

O momento que mais me encantou (e a palavra é exatamente essa) foi justamente aquele em que essa frase do coração selvagem aparece: é o momento da conversão de Stephen Dedalus, que, em sua consciência, se afasta da família, da pátria e da religião para se tornar artista. É quando, olhando o mar em adoração, ele avista a garota que, por alguns instantes, torna-se sua obra de apreciação estética. É nessa "epifania", ou ainda, nesse "encantamento do coração", nas palavras do próprio autor, que Dedalus descobre a solidão feliz do artista, que recria a vida fora da vida.

"Her image had passed into his soul for ever and no word had broken the holy silence of his ecstasy. Her eyes had called him and his soul had leaped at the call. To live, to err, to fall, to triumph, to recreate life out of life! A wild angel had appeared to him, the angel of mortal youth and beauty, an envoy from the fair courts of life, to throw open before him in an instant of ecstasy the gates of all the ways of error and glory. On and on and on and on!"

"A imagem dela entrara na alma dele para sempre e nenhuma palavra havia quebrado o sagrado silêncio de seu êxtase. Os olhos dela o tinham chamado e a alma dele atendera prontamente ao apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida fora da vida! Um anjo selvagem havia aparecido para ele, o anjo da juventude e da beleza mortais, um enviado das cortes justas da vida, para escancarar diante dele num instante de êxtase os portões de todos os caminhos do erro e da glória. Adiante e adiante e adiante e adiante!"

Pouco entendo de Joyce e só li o Retrato muito superficialmente. Além disso, acho que não concordo com a teoria estética defendida por Dedalus. No entanto, não é nada disso que importa. O que importa é que terminei o ano encantado, encantadíssimo... E o que é mais curioso: não foi na França que encontrei as palavras mágicas! De todo modo, percebi que estou sempre em busca de palavras que encantem a vida... E já sei que não é na tese que elas aparecerão. Mas isso não faz diferença. O fim se aproxima, sinto-o, e por ora, quero pensar apenas em meu pequeno réveillon na Maison du Brésil. O ano que chega, talvez ele seja mesmo "feliz" como dizem por aí...

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sobre coisas que passam


O Natal passou. Passou como tudo na vida. E o ponto é exatamente esse: tudo passa. Tudo, tanto o que queremos que passe quanto o que gostaríamos que fosse eterno. É um pouco difícil de explicar, talvez seja chocante para alguns, mas o que sinto neste pós-Natal em Paris é - isso hoje já não dói dizer - uma profunda indiferença. Mesmo tendo sido um Natal bem diferente, talvez único para mim, não consigo deixar de sentir que o que passou é indiferente, que foi apenas mais um momento único, especial, inesquecível etc. dentre tantos momentos únicos, especiais, inesquecíveis etc. que passam na vida.

Sei que, a rigor, o que vivi este ano não pode ter sido indiferente. Afinal, foi um Natal em Paris! Quantos outros passarei por aqui? Talvez mais nenhum. A todo instante sou lembrado do privilégio de morar neste lugar: a capital das luzes e da civilização. Sinto todo o peso de ser um aspirante ao mundo da filosofia acadêmica, para quem esse ambiente onde se respira cultura 24 horas por dia deveria ter muito significado, muito valor... Talvez eu devesse achar este Natal que acaba de passar o mais feliz de toda minha vida...

Sim, talvez. Mas, sinceramente, não penso que seja nada disso. E para ser bem sincero, desejei que este Natal passasse bem rápido, que acabasse logo, como se assim eu pudesse abreviar minha tristeza e me sentir melhor. E o Natal passou, talvez não tão rápido quanto eu gostaria, mas passou. Eu deveria até ter ficado feliz por causa disso. Mas não fiquei, porque sei que o Natal teria passado mesmo que eu tivesse desejado que ele durasse para sempre. E, nesse caso, eu me consolaria tentando me convencer de que, apesar de ter passado, foi um momento único, especial, inesquecível etc., e que eu deveria ficar feliz por isso.

No fundo, eu sempre deveria ficar feliz por qualquer coisa. Porque há sempre um ponto de vista positivo para tudo. Sei disso. Ainda mais nessa época do ano, quando costumo receber muitos cartões eletrônicos com mensagens cheias de otimismo, que me estimulam a ver as coisas positivamente, e que me lembram o tempo todo que eu deveria me sentir feliz... De um certo ponto de vista, é claro.

Mas o que eu sinto de fato, que nem sempre corresponde àquilo que eu deveria sentir, é algo meio absurdo nesses tempos em que os livros de auto-ajuda fazem tanto sentido para tanta gente. No fundo, tenho medo de perder meus objetos de amor, os quais eu desejaria que nunca tivessem passado. Confesso: fico triste com a possibilidade de esquecer os amores do passado. E o paradoxo é que, se por um lado aquilo que amamos é inesquecível, por outro, tudo que passa - tudo mesmo, até o que amamos - se torna necessariamente esquecível. Para ser coerente, então, deveria me sentir ao mesmo tempo feliz e triste.

A Bíblia afirma que "o amor não passa" (I Coríntios 13:8). Não acredito. Se o amor não passasse, não precisaríamos nos lembrar dele. É preciso lembrar-se sempre do amor para amar. Pois tudo se passa como se, sem memória, o amor simplesmente não pudesse existir. Para amar, é preciso dizer que aquilo que amamos é "inesquecível", ou seja, que continuaremos nos lembrando do amor mesmo que ele seja coisa do passado.

Pois se o amor não for passado, isto é, se não submetermos o objeto amado à dura prova do esquecimento, como poderíamos amar? Mas, ao mesmo tempo, que prova mais dura é essa! Porque, diante do esquecimento, o amor corre o risco de não sobreviver, deixando em seu lugar apenas indiferença... Afinal, tudo passa, tudo tende ao esquecimento, e tudo que esquecemos se torna indiferente, mesmo que algum dia tenha sido para nós inesquecível. Para podermos lembrar, é preciso que também possamos esquecer. E, no fim, o amor é como disse um poeta português: "tão contrário a si".

Lembrei-me de "Hiroshima mon amour" (1959). Filme que amo do Alain Resnais, e que, só por isso, considero inesquecível. A história é sobre o lugar do amor entre a memória e o esquecimento. As falas foram escritas pela Marguerite Duras, e uma delas tem tudo a ver com o que pensei para escrever este post:

O homem (Lui) diz para a mulher (Elle): "Daqui a alguns anos, quando eu tiver esquecido você e outras tantas histórias como esta que, ainda pela força do hábito, acontecerão, eu me lembrarei de você como do próprio esquecimento do amor. Eu pensarei nesta história como no horror do esquecimento. Eu já sei disso." (Marguerite Duras, Hiroshima mon amour. Paris: Gallimard, 1960, p. 105)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Bricolage


De tanto ir à Biblioteca Nacional pelo mesmo caminho, já não vejo mais o próprio caminho. É como se, nos 25 minutos do trajeto de RER e metrô até Quai de la Gare, os mesmos lugares que há poucos meses cativavam tanto meus olhos tivessem deixado de existir. Pura ilusão, é claro. Sei que os lugares continuam lá, e que agora eles se escondem de mim, misturando-se ao "invisível das coisas comuns", a tudo aquilo "que não vi" e que só percebo "tarde demais". Porque, como disse a poetisa, "os olhos deixam de ver o que estão vendo sempre".

Mas... Hummmm... Já ouvi isso antes. Seria um "eco"? Quem sabe, "auto-análise"?! Ou, simplesmente, confissões... Acho que, para variar, estou contando mais uma vez a "mesma história". Variações sobre o mesmo tema.

Ora, sei que "o mesmo não é o mesmo, jamais". E que bastaria "um empenho de rememoração constante" daquilo que não posso esquecer para poder lidar com "souvenirs que obscurecem à medida que o tempo passa". Poderia então construir uma "representação da memória" que me ajudasse a não sentir "saudade daqueles primeiros momentos de descoberta do amor". Faria tudo com a certeza de que "as estações não se repetem" porque "cada fato é singular" e "os brotos da primavera despontarão pela primeira vez em toda a história". Poderia até voltar a "ver e rêver o mesmo como se fosse novo de novo e de novo...". Poderia voltar a amar, e depois, amar "de novo... e sempre".

Porém, percebo que até isso é uma "repetição". Para falar "novo de novo", sou forçado a recorrer a "ecos de discursos de outros tempos e lugares". E aí me lembro que, em Paris, tudo me parece "assustador". Eu "sinto o medo", sobretudo dos mortos, e tudo que faço é fugir: "vivo fugindo de fantasmas". Além disso, estar em Paris me faz sentir "culpa de ter ido longe demais". Daí que, às vezes, eu precise enfrentar a "vontade de voltar para o Brasil", muito embora eu saiba que "não poderia escapar de mim mesmo e, por conseguinte, de toda a realidade que, por alguns instantes, eu gostaria de esquecer". Não adianta "fechar os olhos", pois os fantasmas, esses mortos dos quais fujo, na verdade "habitam todos dentro de mim".

"Ainda não sei quem sou". Sinto-me "estrangeiro", "selvagem", "triste". Mas talvez não seja nada disso. Afinal, são tantas as minhas incoerências, minhas "descontinuidades"... No fundo, sou apenas alguém que insiste em montar o próprio "quebra-cabeça", mesmo sabendo que as peças "não têm ligação necessária entre si". Por isso, "a cada movimento tenho medo de descobrir que a tão desejada cadeia invisível responsável por amarrar as coisas soltas de meu universo na verdade não existe". Mesmo assim, "deslizo, continuo, continuo... Sempre, sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim". Como se eu ainda fosse "um crente de verdade", "como se eu confiasse num final feliz".

O Natal se aproxima. Este ano, será absolutamente novo para mim, por causa da neve. Neve e Natal: nunca vi combinação mais "bela e triste". No entanto, tenho a impressão de já ter visto esse filme antes. É como se fosse "uma surpresa que, na verdade, eu já conhecia de antemão, mas que, nem por isso, deixará de ser nova para mim". E, em meio às velhas novidades, vejo aquelas que nos fazem "acreditar em coisas que não existem". Refiro-me aos encontros (ou desencontros?) com "seres iluminados e iluminadores", como poetisas e borboletas, que possuem a sabedoria das palavras e dos gestos mágicos que encantam e enchem de sonhos o "vazio infinito que sinto existir dentro de mim".

domingo, 12 de dezembro de 2010

Cinco meses


"[...] E aí vem aquele sentimento de que tudo o que eu poderia dizer já foi dito, de que agora tudo que eu disser será repetição, como ecos de discursos de outros tempos e lugares. Como se só o que restasse fossem repertórios de palavras usadas, que nunca mais serão pronunciadas com a magia da primeira vez."

Melhor, então, que o eco seja de Clarice:

"Ando, deslizo, continuo, continuo... Sempre, sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim. - Onde foi que eu já vi uma lua alta no céu, branca e silenciosa? As roupas lívidas flutuando ao vento. O mastro sem bandeira, ereto e mudo fincando no espaço... Tudo à espera da meia-noite... - Estou me enganando, preciso voltar. Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. É porque a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma." (Clarice Lispector, Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, pp. 71-72)

sábado, 4 de dezembro de 2010

Bela e triste


Nem o céu cinzento e a neve no chão, nem a falta de sol e o frio em meu rosto, nem mesmo o mau humor e o mau odor dos franceses (e pensar que reclamávamos deles no verão!) conseguem deixar Paris menos bela.

Mas não é a beleza das imagens que eu via nos cartões postais. Ao vivo, Paris no fim de outono é diferente. Bela, sim, mas triste. Como aquela beleza do Madrigal Melancólico de Manuel Bandeira:

A beleza, é em nós que ela existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza

Novamente, a questão que me incomoda: se eu fechasse os olhos, Paris continuaria bela? *

Ora, quero crer que sim. Afinal, bom seria se sua beleza não fosse tão frágil e tão incerta a esse ponto, diante de um simples olhar. Poderia dizer sem vê-la: continuas bela! Ou talvez precisasse mentir... De todo modo, a despeito do que eu visse ou deixasse de ver, se Paris for bela, também será triste.

Porque o poeta disse que a beleza é triste. Se não fosse triste, não seria beleza. Que tristeza... Mas, enfim, é a vida! E a vida, ela é assim. Por isso é vida. Por isso é bela...

Explicava para meus amigos que escrevo sempre que estou triste. Mas faltou dizer que não é só por causa da tristeza. Não escrevo para ficar mais triste. Na verdade, escrevo porque gosto das coisas belas, ainda que, justamente por serem belas, elas me entristeçam tanto.

Só acho difícil quando a beleza é muita. Porque nessas horas, fico sem saber o que dizer. Emudeço, por causa da beleza, por causa da tristeza, sei lá por quê. Paris no frio, com esse cenário meio glacial (e surreal), é emudecedora, pelo menos, para mim.

E aí vem aquele sentimento de que tudo o que eu poderia dizer já foi dito, de que agora tudo que eu disser será repetição, como ecos de discursos de outros tempos e lugares. Como se só o que restasse fossem repertórios de palavras usadas, que nunca mais serão pronunciadas com a magia da primeira vez.

Ou ainda, como se, diante da beleza e da tristeza de Paris, não houvesse mais nada a dizer depois do que eu já disse, mesmo que eu quisesse falar - poética e magicamente, pensando aqui e estrangeiramente - do céu cinzento, da neve no chão, do frio de vento que sinto no rosto e também no coração.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O que não vi

Hoje nevou em Paris. Foram os "primeiros flocos" do inverno que chega, segundo os noticiários. Eu ainda andava na rua no horário previsto pela meteorologia. Queria encontrar a tal da neve. Onde ela está?, pensava eu. Podia senti-la nos rostos das pessoas. Mas não a vi. Porque quando a neve caiu em mim, achei que fosse chuva...

Tudo que fiz foi cobrir a cabeça com o capuz de meu super-capote impermeável e acelerar os passos para chegar logo em casa. Aquela chuva não me interessava. Só depois descobri que havia passado por uma inusitada experiência de desencontro. Perguntaram-me: "viu a neve?" E eu, com cara de Forrest Gump, disse: "neve?!"

Bem que achei aquela chuva meio diferente, meio estranha, porque as gotas pareciam mais pesadas que o normal. No entanto, o único pensamento que me ocorreu na hora foi que eu nunca havia sentido tanto frio como hoje. O chão molhado era igual a outros que eu já havia visto, e em nenhum momento desconfiei que aquele não era o chão de sempre. Estava molhado sim, mas não de água de chuva.

Pois é, a neve chegou... E chegou sem que eu a percebesse. Estava ali, tão presente, tão próxima a mim... E eu, distante, pensando em encontrá-la com outra face, como nos filmes. Teria sido nosso primeiro encontro, mas o encontro não aconteceu. Porque embora ela estivesse comigo, eu estava em outro lugar. Simplesmente, não a reconheci. Pois, para mim, não era ela.

Meus olhos viam o que eu mesmo não vi. Isso é estranho!

Buscava algo que não existia, ou melhor, que existia apenas em meu imaginário de estereótipos. E deixei-a passar com indiferença. Talvez, para ela, fosse como se eu não a esperasse... Ou pior, como se ela nem sequer existisse para mim. É verdade que seu encanto era discreto e que vinha sutilmente misturado ao invisível das coisas comuns. Mas era um encanto real, que exigia de mim apenas um pouco mais de sensibilidade.

Sensibilidade para ver o que estava bem à minha frente, e que talvez justamente por estar tão perto, não poderia ser percebido por olhos como os meus. Olhos tão obstinadamente fixos num horizonte distante que, assim como o futuro, não existe. De novo, sinto necessidade de ver a realidade. Mas não a realidade que eu trouxe do Brasil. Porque, em Paris, a realidade é outra, ela joga comigo escondendo-se e desafiando-me a encontrá-la. Onde ela está? Onde ela estará?

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Violência

Na quinta, na sexta e no sábado, os compromissos acadêmicos foram muitos, e tive que enfrentá-los todos, sozinho. Nesses dias, não consegui arrastar ninguém comigo como já havia feito antes. De repente, encontrei-me no meio de franceses sem nenhum outro brasileiro para me fazer companhia. Era como se estivesse sem referência... Por alguns instantes, tive que esquecer meu idioma nativo e falar tudo em uma língua estranha. Não era a primeira vez, mas nesse curto período as coisas aconteceram como num turbilhão. Não pude escapar daquilo que me engolia. Tudo muito intenso, rápido e vertiginoso.

Tive que fazer-me entender, mesmo quando eu mesmo não sabia bem o que estava dizendo. Nesses momentos, mais do que nunca, senti toda a minha dificuldade para manter uma conversação, pois não conseguia seguir o fio das discussões de maneira inteligente e interessante, e muito menos acompanhar as piadas, que sempre me escapavam. Meu riso, quando não era dissimulado, expressava o constrangimento de quem não pode oferecer uma genuína gargalhada para legitimar a própria presença no grupo ao qual se deseja pertencer.

Não digo essas coisas para parecer vítima da situação: trata-se apenas de expressar, de uma certa forma, o sentimento de solidão - e também o de estrangeiro - que experimentei. Sentimento de ter diante de si um "vasto deserto do mundo", como disse Saint-Preux, personagem de um famoso romance do século XVIII, ao relatar suas primeiras impressões da sociedade parisiense...

Felizmente, no final, fiquei satisfeito com minha performance. Fiz apenas o que tinha condições de fazer para desempenhar meu papel de civilizado, mas penso que representei razoavelmente bem minha persona... Apesar de não haver quem me socorresse nas horas de insegurança diante daqueles estranhos, consegui dar provas de que, em alguma medida, poderia responder por mim mesmo às indagações que me eram feitas. Falei, sim, falei. Talvez, até mais do que deveria. Afinal, eram professores, alguns dos quais, ilustríssimos. Mas não poderia não falar com eles: era o que todos cobravam de mim. Era o preço a se pagar para estar ali, naquele convívio social na Sorbonne e na École Normale.

Não, esses estranhos não eram "maus". Pelo contrário. Foram todos extremamente gentis comigo, atenciosos, simpáticos mesmo. No entanto, mesmo com tanta simpatia e gentileza, havia algo que me pesava, uma espécie de violência. Porque, por um lado, o silêncio nas rodas era proibido, e por outro, havia a cobrança por uma certa atuação social. No fundo, tudo não passava de um jogo estruturado por regras de conduta: ou seja, sociedade. E a violência de que falo diz respeito àquela demanda de energia para se jogar o jogo, para manter as relações, ou, ao menos, para sustentar as conversas. Uma violência sem a qual as próprias relações humanas, ao que me parece, não poderiam existir.

Tentei escrever algumas coisas sobre isso. Mas estava tudo muito filosófico, horrível... Apaguei, porém, não sem um certo incômodo. Porque o sentimento dessa violência é muito marcante e muito difícil para mim, e ainda não consegui dar uma boa representação para ele. Na verdade, já sentia algo dessa violência (no sentido acima) antes, no convívio normal com as pessoas de meu cotidiano no Brasil. Mas aqui em Paris, nessa sociedade estranha em que sou permanentemente deslocado para fora de meu próprio eu, a percepção da violência das relações humanas ganhou uma dimensão incrível: chega a ofuscar meus olhos e a fazer doer meu coração.

Não sei terminar de escrever isso. É tudo muito difícil, muito difícil...

sábado, 13 de novembro de 2010

Quatro meses

Demorei alguns dias para fotografar as folhas amarelas das árvores e o tempo não me perdoou: agora elas estão marrons. Não que o espetáculo das folhas marrons seja menos belo que o das folhas amarelas. Mas é que a recordação ficará marcada pelo sentimento de que, nessa súbita mudança, deixei algo essencial escapar por muito pouco.

Bem que me avisaram que a transformação na paisagem seria rápida! Mas - que merda! - não fui rápido o suficiente. Por negligência ou excesso de confiança (isso pouco importa agora), deixei o momento exato passar. E o que resta para o presente é apenas a constatação de que aquele amarelo não voltará mais. Pelo menos, não para mim. Porque, no próximo ano, não estarei em Paris nessa mesma época para ver o ciclo da vida se repetir. Ops... Eu disse "ciclo"?!

Ora, talvez a vida não seja feita de ciclos como as estações que se repetem. Pois afinal, pensando bem, as estações não se repetem: as folhas amarelas deste ano não serão as mesmas folhas amarelas do próximo ano, porque os brotos da primavera despontarão pela primeira vez em toda a história. Nesse sentido, a história não tem volta, pois cada fato é singular. O que passou, passou para sempre, e, ainda que volte, não poderá ser comparado. Porque o mesmo não é o mesmo, jamais.

Não que eu prefira pensar assim... Afinal, em relação à história cíclica, acho que a história sem volta é, na verdade, até mais difícil.

Sim, mais difícil, porque se a história se repetisse, eu poderia pensar, de alguma forma, em melhorar. Poderia prometer a mim mesmo que, na próxima vez, não me atrasaria. Ah, a "próxima vez"... Pensar nas repetições é tão reconfortante! É quase como viajar no tempo: poder voltar ao passado com a consciência do presente e, como nos filmes, corrigir todos os erros. Tão simples quanto reescrever partes de um texto que, somente depois de escritas, vejo que ficaram ruins.

No próximo outono, tudo será diferente, ainda que tudo se pareça com o mesmo de agora, seja em Paris ou onde quer que eu esteja. Pois, na realidade, a repetição do mesmo é simplesmente impossível. Futuro: sinônimo de incerteza e, ao mesmo tempo, de possibilidades de sonho. Tempo de rê-ver meus desejos. Tento me convencer de que pensar assim seria motivo de esperança, de que poderia me sentir feliz diante do imprevisível. Mas hoje, depois de ver aquelas folhas marrons sabendo que há apenas alguns dias elas eram amarelas, senti um certo pesar. Porque, além das fotos que tirei, ficarei também com a lembrança de algo que era único mas que perdi para sempre, só porque cheguei tarde demais...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Eterna ausência

Confesso que, em Paris, sinto saudade de Deus. Já fui religioso, um crente de verdade mesmo, quase um pastor protestante, e lembro-me que, quando minha fé ia bem, a vida parecia ter sentido, até nas horas de tristeza. Mas agora que Deus é apenas mais um dos fantasmas que habitam em mim, tudo é mais difícil: ser responsável pelo sentido de minha própria história é angustiante, exige de mim muita força interior para lidar com meus fracassos, e suportar o vazio que permeia minha existência só com a razão e sem a esperança de uma redenção futura, é duro demais. O mundo sem Deus é coisa de adulto. Mas, fazer o quê? Pois, assim como eu não poderia evitar envelhecer, não pude evitar que Deus morresse em mim.

Talvez seja por isso que Jesus disse que o reino dos céus é das criancinhas: porque Deus sabia que, quando nos tornássemos adultos, iríamos preferir esquecê-lo. O problema é que, em uma sociedade cristã como a nossa, esquecer Deus é quase o mesmo que ter um pedaço de nosso corpo arrancado. Deve ser por isso que crescer dói tanto, a ponto de, às vezes, eu ter vontade de permanecer criança para sempre, como se assim eu pudesse viver sem dor, e ainda, com a promessa do paraíso... Feliz talvez.

Contudo, sendo honesto comigo mesmo, sei que não poderia ser criança por muito tempo. Porque, egocêntrico como sou, eu usaria Deus infantilmente como des-culpa, isto é, culparia Deus pelas coisas que não acontecem segundo meus próprios desejos. E agora que não tenho mais Deus para culpar, culpo os outros, o que não apenas confirma minha infantilidade, como também mostra que meu problema com Deus é sério, uma vez que replico meu imaginário teológico da punição numa versão laica. Agora não é mais Deus quem me castiga por minhas ofensas, mas os outros. E isso minha experiência tem demonstrado ser trágico, pois, por pior que seja a convivência, sei que não posso viver sem gente ao meu redor. E, assim, talvez haja sentido em se dizer que o inferno são os outros!

Neste domingo, tive muita vontade de voltar para o Brasil. Muita vontade mesmo. Porque não é fácil sustentar o sentido da minha história sem um Deus para me convencer que a vida não é tão absurda como costumo achar. Queria desistir. Mas, ao mesmo tempo, sei que, se eu voltasse, jamais me perdoaria por uma atitude tão covarde. Mesmo porque essa crise continuaria no Brasil. Além disso, fico muito constrangido por saber que há pessoas que dariam tudo para estar em meu lugar, pessoas para as quais uma bolsa de estudos de um ano em Paris seria, no mínimo, sinônimo de infinita felicidade. Como abrir mão de uma chance dessas?!

Sentia-me dividido, ou melhor, dilacerado, porque era como se eu fosse puxado com violência por dois desejos radicalmente contraditórios dentro de mim. Desde julho, nunca senti tanto a falta de meu analista. Não cheguei a ficar desesperado, mas, por um instante, pensei que poderia jogar no lixo tudo que havíamos construído nas conversas que tivemos. Felizmente, lembrei-me do que ele havia me dito antes da viagem sobre tentar dar uma representação para essa minha angústia a fim de torná-la, de alguma forma, um pouco menos terrível para mim. E foi o que tentei fazer, lembrando dos acontecimentos que me levaram a descrer em Deus.

Como o assunto é chato, tentei ser breve.

O que fez desaparecer minha fé em Deus foi a mesma coisa que me levou a crer em Deus: eu queria viver o amor. E não só o amor espiritual do cristão em relação a Deus (que era muito místico para mim, nunca consegui compreender), mas o amor em todos os sentidos nas relações humanas, inclusive naquele sentido que, imaginava eu, levaria duas pessoas a decidirem se casar. Aliás, só comecei a freqüentar uma igreja porque havia me apaixonado per-di-da-men-te por uma moça evangélica de São Paulo, em 1997: ela me convidou para conhecer Jesus... E eu até conheci Jesus, mas amor (no sentido que eu pudesse compreender), que era o que eu queria, ficou na incógnita.

De todo modo, eu era muito ingênuo (recém-formado, um interiorano que começava a trabalhar como engenheiro na capital), e essa experiência me aproximou da vida real, que é feia, mesmo em meio aos mais santos cristãos. Não demorou muito para eu perceber que, entre o que está escrito na Bíblia sobre o amor e o que acontece de verdade nas relações humanas, há um abismo intransponível. Eu até tentei estudar melhor essas questões cursando teologia, mas não deu certo: após dois anos de seminário, o que a Bíblia falava de amor já não fazia mais sentido prático nenhum para mim. Sabia até falar dos vários tipos de amor em grego, mas não fazer o que eu achava mais importante: vivê-los.

Nesse tempo, encontrei por sorte - e não por predestinação, como já pensei - uma pessoa muito especial, Jacque, que me fez pensar, mais do que nunca, que seria possível viver o amor verdadeiramente. E, durante um bom tempo, isso de fato aconteceu: com Jacque aprendi que, para além do sexo, amar era compartilhar as coisas tristes e alegres da vida, sobretudo as mais secretas, com cada um buscando no outro o apoio necessário nas horas mais difíceis. Infelizmente, não soubemos lidar com certas dificuldades inerentes à própria relação do casamento, caímos na armadilha da rotina e, quando percebemos, já era tarde demais: na prática, após oito anos juntos, havíamos nos esquecido do amor.

Que triste essa lembrança! Esquecemo-nos daquilo que mais buscávamos, e que, para existir, dependeria de um empenho de rememoração constante meu e dela... Esquecemo-nos de lembrar do amor. Pergunto: de quem foi a culpa, meu Deus? Não sei responder. Tudo que sei é que, como resultado, o amor que sobrou entre nós é apenas aquele que, em alguma medida, resta em nossas memórias embaçadas pela tristeza, memórias até meio apagadas de tão cheias de  marcas e feridas. Esquecimento: sinônimo de morte, como uma perda irreparável. Em sentido bíblico, foi como ter comido o fruto proibido. Por fim, o sentimento que tenho é o de uma saudade: saudade daqueles primeiros momentos de descoberta do amor, que, assim como nossa inocência, ficaram perdidos para sempre no passado.

Lembrei-me do Rubem Alves, que é até hoje meu teólogo favorito. Ele foi um dos autores que me fizeram querer estudar filosofia. Não só pelas heresias que escreveu, mas sobretudo pelo jeito como ele sabe dizer as coisas que mais me importam. Nunca vou me esquecer de "Sobre deuses e caquis", onde ele fala da teologia, isto é, do discurso sobre Deus, como "celebração de um vazio que nada pode encher". Suas palavras, de certa maneira, me ajudaram a lidar com esse vazio infinito que sinto existir dentro de mim:

"Teologia são os poemas que tecemos como redes sobre a saudade de algo cujo nome esquecemos.

Qual deles é verdadeiro? Poemas não podem ser verdadeiros. Mas devem ser belos.

E é só por isto que eles têm o poder mágico de possuir o corpo. A verdade é o que é; o que está presente. Mas o corpo se inclina para o que não é - Desejo! - o que ainda não nasceu, ou que já morreu, contornos do 'pedaço arrancado de mim'. E me veio esta idéia insólita de que Deus é o nome que damos a esta ausência que habita o corpo..."

Não, não era Deus quem eu procurava. Na verdade, estou em busca do nome que possa habitar e possuir meu corpo, não como um fantasma, mas como um pedaço de mim, como aquilo para o qual se inclina o meu desejo. Desejo que me leva a acreditar em coisas que não existem. O que exatamente isso significa, eu não sei. Mas tenho a impressão de que, quando eu descobrir, terei reencontrado o amor. Não com a pretensão de que seja um amor "eterno" (afinal, quem acredita nessas coisas?), mas um amor que dure enquanto eu conseguir não me esquecer dele de novo.

[A Jacqueline, em memória de nosso amor.]

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Saudade



Não é a melhor entrevista com Lévi-Strauss que já assisti. Mas é a que eu considero mais emocionante.

E acho que agora sei a razão: vejo nela o relato de alguém que pensava nas relações humanas com um sentimento de saudade.

Lévi-Strauss tem saudade de um Brasil que ficou para sempre no passado e que, por mais que amasse, não poderia voltar jamais.

Se suas palavras não fossem tão rousseaunianas, não seriam tão bonitas...

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Fantasmas

Passei hoje em frente ao café Old Navy, no boulevard Saint-Germain. Era onde Cortázar costumava escrever, dizem.

Não tive coragem de entrar. Porque imaginei que poderia encontrar Cortázar lá. Que loucura seria! Se o encontrasse, ele poderia olhar para mim. E, se olhasse, o que eu lhe diria?

Aí está minha dificuldade: queria saber o que dizer a uma pessoa que não pode mais viver conosco. Qualquer palavra seria inútil... Talvez o melhor fosse não dizer nada. Mesmo porque, antes de tudo, seria preciso vencer o medo de encarar um fantasma.

Em meio àquela multidão que andava pelo boulevard Saint-Germain, será que eu encontraria Cortázar? E, se o encontrasse, e se ele olhasse para mim, venceria eu o medo de olhar para um morto? Não sei, não sei... Talvez, por conta de minha covardia, eu preferisse simplesmente fechar os olhos. Ou seja, fugir...

Na verdade, vivo fugindo de fantasmas. E, no entanto, tenho que lidar com eles todos os dias. Eles sempre me encontram, sempre me assombram, e não por acaso, afinal, estão muito perto: meus fantasmas habitam todos dentro de mim. E em Paris, sinto que a convivência com os mortos é muito mais difícil, porque é como se eles estivessem mais perto do que nunca.

Hoje pensei: não vim para Paris, vim para dentro de mim. Paradoxalmente, acabei me aproximando ainda mais do que eu queria evitar. Pois aqui, "chez moi", não tenho para onde fugir dos mortos. Que destino!

Sim, destino. Porque tenho a impressão de que não escolhi nada isso. Se eu fosse o autor de minha própria história, teria me feito corajoso, um herói de verdade, ou, pelo menos, um personagem que soubesse lidar melhor com fantasmas. Mas só o que sei fazer é fugir deles.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Longe demais

Tento entender o porquê da falta de vontade para escrever sobre o primeiro encontro pessoal que tive, no dia 16, com meu orientador da Sorbonne. Afinal, foi um fato muito importante no contexto de minha vinda a Paris, e, por isso mesmo, penso que as impressões acerca desse momento mereceriam ser registradas.

No entanto, sempre que eu tentava começar algo, a vontade de escrever desaparecia. Tentei várias vezes, mas não consegui. Fiquei espantado comigo mesmo porque eu já havia escrito sobre tantos assuntos banais... Mas sobre esse assunto, justamente esse, a mágica da escrita simplesmente não acontecia: escrevi até sobre outra coisa (no post Mar Absoluto), mas sobre o encontro, nada, nadinha, rien de rien.

A única resposta que consegui elaborar surgiu a partir da leitura de uma carta que Freud escreveu a seu amigo Romain Rolland, na qual relata o sentimento de "estranha irrealidade" que teve ao visitar a Acrópole de Atenas pela primeira vez aos 48 anos. A reação de Freud foi perguntar a si mesmo se a Acrópole que via era real, se tudo aquilo existia verdadeiramente, como havia aprendido na escola. E, na carta, descreve o estranhamento em relação a sua própria atitude de incredulidade diante de um fato que, a princípio, deveria lhe proporcionar imenso prazer.

Freud explica tratar-se de um fenômeno psíquico de ilusão da memória: quando jovem, ele via Acrópole apenas como um distante objeto do desejo e, por isso mesmo, havia duvidado de sua existência; contudo, ao deparar-se com a Acrópole na idade adulta, teve a memória deslocada para esse tempo de descrença e, por um instante, sentiu que "Isso que vejo não é real". Ou seja, uma falha de memória que funcionava como uma espécie de mecanismo de negação da realidade.

Na carta, Freud acrescenta ainda que tal mecanismo tem relação com um sentimento de culpa: culpa de ter ido longe demais, para além do que seu pai (que era um simples comerciante e para quem Acrópole não significava grande coisa) lhe permitiria ir: "Tudo se apresenta como se o essencial, no sucesso, fosse levar as coisas mais longe do que seu pai, e como se não fosse permitido querer ultrapassá-lo." Daí a razão não apenas do sentimento de irrealidade, mas também de um pessimismo castrador expresso em pensamentos como "bom demais para ser verdade" e "não sou digno de tal felicidade, não a mereço".

Eu já conhecia essa carta. Porém, foi somente aqui, em Paris, que o que Freud escreveu fez sentido para mim. Porque Paris me faz sentir essa "estranha irrealidade". Encontrei o texto mais ou menos por acaso, em minhas leituras fora da tese (que podem acabar me levando longe demais) sobre problemas ligados à memória, que me interessam muito desde que cheguei a este lugar. E eis que, novamente, deparo-me com a questão do sentimento de culpa. Culpa de estar em Paris, de ter ido longe demais. Ou, pelo menos, mais longe do que me seria permitido ir.

Como se o que tivesse acontecido naquele dia 16 de outubro de 2010 fosse proibido... Daí a razão de não escrever sobre o fato. Como se minha própria memória (a escrita) se recusasse, num movimento de castração, a admitir a realidade de certas coisas... Será?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Mar absoluto


Ontem senti que eu talvez não quisesse estar aqui. Porque, de certa maneira, Paris é como a sala do analista naqueles dias em que faltava-me coragem para falar de certos assuntos. Pois é... Morando neste lugar de sonho, sou levado a pensar em questões que jamais passariam por minha cabeça e que jamais me afligiriam se eu estivesse em condições normais no Brasil.

Posso dizer que, no Brasil, eu fugia de mim mesmo buscando ocupar-me com aquilo que pensava poder chamar de realidade: não uma fuga da realidade, mas uma fuga para a realidade. Como se os problemas práticos da vida, em geral ligados a dinheiro e a carreira no meu caso, pudessem ocupar mais espaço em minha lista de prioridades do que as questões existenciais, que eu relegava ao mundo da ficção, compreendido pelo cinema, pela literatura e pela filosofia. Antes de tudo, era preciso ser forte, como diziam as vozes dos antepassados:

"Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!
"

Mas em Paris, onde ficção e realidade se confundem o tempo todo, vejo cair por terra minha antiga forma de ordenar a vida. Porque os problemas práticos revelam-se para mim absolutamente fictícios, coisas de existência evanescente, vindas de um lugar distante perdido no reino da imaginação, como se dinheiro e carreira é que representassem, de fato, uma fuga da realidade de meu cotidiano francês. Um cotidiano que, sem que eu precise me esforçar muito, me leva a pensar em questões pessoais bastante delicadas - como o amor, a solidão, o sentido da vida -, as quais, estranhamente, adquirem uma concretude inédita, muito pesada para meus sentimentos despreparados; questões que acho difíceis de serem lidadas com meu pretensioso, porém ingênuo, racionalismo de engenheiro.

Em Paris, não tenho para onde fugir. Não posso fugir da realidade, pois ela me cerca por todos os lados, como num sonho. Tampouco posso fugir para a realidade, porque o que antes eu chamava de ficção, agora assola meu corpo materialmente, como se o próprio real da vida que dói na pele se reduzisse aos dramas de romance e às discussões dos filósofos (inclusive política, que eu sempre havia visto como fábula). Não posso nem mais dizer: isto é real, isto é ficção, porque a realidade mesma já não se opõe ao fictício, ela é frágil e fugaz, como uma promessa, um desejo ou uma história inventada. Uma simples mudança de opinião ou um instante de desequilíbrio emocional pode fazer todo o real se desmanchar, como um discurso que se contradiz, como um castelo de cartas que cai com a mais leve das brisas.

Neste domingo, tentei fugir do real indo ao Musée d'Orsay, mas não deu muito certo: ali também havia muita realidade. Mas, ao mesmo tempo, era tudo tão irreal... Que confusão! De todo modo, o mais notável foi que ninguém tenha me influenciado na decisão de ir àquele museu. Fui eu mesmo que escolhi. Planejei tudo durante a semana e juro que desejei realmente esse passeio. Mas quando entrei e comecei a olhar as obras - as telas de Courbet e de Gauguin, as esculturas de Carpeaux, e toda aquela arte produzida por outros tantos nomes que simplesmente não faziam sentido real para mim -, era como se eu não quisesse estar ali. Logo me aborreci. Queria fugir. Mas não podia mais, porque eu sabia que, independentemente de onde eu fosse, não poderia escapar de mim mesmo e, por conseguinte, de toda a realidade que, por alguns instantes, eu gostaria de esquecer.

Deve ser por isso que fiquei me lembrando do poema "Mar Absoluto", da Cecília Meireles. Porque nele, Cecília fala de uma fuga para além da realidade ilusória da terra firme ou dos pescadores mortos que pedem rezas: é a busca de um outro mar, muito difícil de se encontrar porque só aparece mediante uma revelação interior, quando, após converter-se a si mesmo ("estudo a solidão"), o eu do poema consegue coragem para querer conhecer esse mar diferente, que, para mim, simboliza o encontro real da poetisa consigo mesma. Um mar com "face espantosa", onde tudo é "sobre-humano", e que, com um profundo senso de realidade (afinal, a realidade não é assim, espantosa, sobre-humana?), Cecília chama de Mar Absoluto. Li esse poema centenas de vezes, e, a cada leitura, um trecho em particular me toca. Desta vez, foi a parte final, que é justamente o momento da conversão do eu e da revelação do Mar Absoluto.

E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Três meses

Parque Montsouris
Mais um dia 12. Confesso que está passando mais rápido do que eu esperava. Que bom... Ou melhor, pas mal, como se diz por aqui.

Hoje começou a greve dos trabalhadores contra a reforma da previdência na França. Sabendo que o transporte público estaria parcialmente paralisado e que haveria muitos protestos nas ruas (as "manifs"), decidi trabalhar em casa mesmo. Estranho estar perto desse fato internacional, que agora é nacional para mim. Enquanto isso, no Brasil, Dilma e Serra disputam o segundo turno da eleição para presidente, que acompanho de longe e com uma certa aflição.

Mas, enfim, estou aqui, trabalhando no doutorado em condições excepcionais, como jamais teria no distante Brasil.

Depois de sofrer o dia inteiro tendo que ler um texto chatérrimo para a tese (Lettres écrites de la campagne, de Jean-Robert Tronchin), saí no final da tarde para correr pelo parque Montsouris, que fica bem em frente à Cité Universitaire. É um lugar muito especial para mim. Não apenas pela paisagem lindíssima, que inclui uma pequena cachoeira e um bucólico lago com patos, mas também por ter sido ali que, pela primeira vez, percebi ser possível algum tipo de sociabilidade com os parisienses. Explico.

Logo após aterrisar em Paris, sentia-me zonzo devido ao cansaço da viagem e à diferença de fuso. Cheguei a passar mal no primeiro dia, de tão atordoado que estava com o choque da mudança. E não foi só o corpo que estranhou: lembro-me da confusão mental que sofri por achar tudo ao meu redor estranho e assustador. Decidi então correr, já que era isso que eu fazia desde a separação para não me deprimir. E deu certo: o mal-estar foi diminuindo à medida que eu corria e via outras pessoas que também corriam. No final, não sei o que me ajudou mais: a atividade física ou a interação social.

Os outros corredores pareciam próximos. Era como se fossem brasileiros só pelo fato de estarem correndo. Esquisito, eu sei, mas não consigo explicar melhor. Era uma ação comum, ou talvez, uma linguagem comum - a corporal - que, a despeito das diferenças de língua e civilização, tornava as pessoas estranhas menos estranhas. Talvez pensassem o mesmo de mim... Interessante essa identificação pelo corpo, ou melhor, pela linguagem do corpo... (antropólogos, me expliquem!) Isso aconteceu no parque Montsouris. Foi uma transformação importante do ponto de vista psicológico. Por isso acho esse parque tão especial.

O parque Montsouris também ficará em minha memória como um lugar de filme. Pelo seguinte motivo.

Por um feliz acaso, assisti ontem Paris, je t'aime (2006). Queria rever os lugares nos quais as histórias acontecem. Já havia feito isso com Amélie Poulain para rever Montmartre. Mas, no caso de Paris, je t'aime, a experiência foi muito mais forte, mesmo porque quase todos os arrondissements estão no filme. Parecia mágica: aqueles cenários, que antes eram absolutamente indiferentes, haviam se transformado em locais familiares aos meus olhos.

E, de fato, mesmo os pontos mostrados que ainda não conheço poderiam se tornar concretos para mim muito facilmente: bastaria um mapinha na mão e alguma disposição para andar. Os detalhes das ruas e dos prédios, o metrô, as roupas dos personagens, as situações e, até mesmo, o clima meio melancólico, tudo isso havia deixado de ser ficção ou cenografia. Em Paris, sinto-me realmente em um filme francês, como se a realidade mesma fosse cenográfica ou como se eu estivesse na própria projeção em uma cena do Truffaut ou do Resnais. Experiência única, que eu simplesmente não consigo imaginar como poderia viver a não ser do lado de dentro da tela, isto é, na própria Cidade Luz.

Tudo isso para dizer que a última história do filme, a da turista americana que relata sua viagem solitária a Paris, termina no parque Montsouris. E foi naquele lugar encantador - resisto muito a usar a palavra "místico" - que a mulher viveu a experiência interior indescritível, traduzida por ela mais ou menos como um sentimento de déjà vu e uma mistura de alegria e tristeza. Ali, sozinha, longe do trabalho e dos conhecidos, a relação distante e sem vida que a mulher tinha com Paris se transformou em uma relação de amor. E, por causa desse amor, ela se sentia viva. Uma história singela e emocionante, como, aliás, quase todas as histórias do filme. Mas essa, em especial, me emociona mais. Porque, apesar de ser outra história, não deixa de ser a minha história em Paris. Como na música do filme, estamos todos sempre "na mesma história".

A música "La même histoire" (que é linda) pode ser ouvida com a tradução da letra neste site: http://letras.terra.com.br/feist/781533/traducao.html

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Sobre arte

 

Meu interesse pelas artes nunca ultrapassou a mera curiosidade. Em geral, aprecio uma tela ou uma escultura com base no sentimento que me leva a dizer: "ah, que linda!". E quando digo isso, não me refiro a nenhuma categoria da estética nem a qualquer tipo de análise especializada. Pois não se trata do juízo de um profissional das artes, mas apenas e tão-somente de uma expressão de encantamento particular.

Nesses termos, não vejo muita diferença entre olhar para uma tela de Klee ou uma de Mondrian (a discussão colocada por Cortázar no capítulo 9 de Rayuela é, para mim, absolutamente estranha). Na verdade, há artistas anônimos que me fascinam até mais do que os clássicos, ainda que, de acordo com certos padrões (ou dogmas) da história da arte, tenham suas obras consideradas apenas como lixo cultural. Mangás, por exemplo.

Talvez um dia eu seja como alguns de meus amigos, que costumam dizer que amam Monet, Van Gogh, Turner, Picasso etc., não apenas como afirmação de uma preferência subjetiva, mas também objetivamente, justificando seus "gostos" com argumentos baseados em conceitos acerca do "belo" aparentemente bastante razoáveis (lembrei-me das aulas de estética no curso de filosofia, e de como vários de meus colegas adoravam tudo aquilo). Seja como for, por enquanto, isso é civilizado demais para mim, ainda que eu goste de visitar museus.

De todo modo, freqüentar os museus de Paris é algo que considero difícil. Porque a quantidade de obras que se pode contemplar por metro quadrado aqui é enorme, e aquele não-sei-quê-de-beleza-sensível que tornaria uma obra especial na comparação com as outras fica simplesmente pulverizado em meio à multidão de belas obras que vejo concentradas. É como conseguir enxergar uma bela mulher nas ruas de Paris, tão repletas de mulheres que mereceriam muito mais do que um mero "ah, que linda!"...

Neste domingo, fui ao museu Carnavalet, que tematiza a história de Paris. Mesmo sendo um museu menor, havia ali também uma grande concentração de obras de arte (ou seja, nada de novo!). De conhecido, encontrei telas que já havia visto em livros, sobretudo na seção da Revolução Francesa. Vi também os móveis do quarto de Marcel Proust onde - dizia a placa de informação - o escritor havia produzido a maior parte de Em busca do tempo perdido. Lembrei-me de Carla, minha professora de francês - a melhor até hoje! -, que é doutora em Proust nas letras...

No entanto, a obra (se é que posso usar esse termo) que mais me encantou no Carnavalet foi o arranjo dos móveis do quarto de uma escritora da qual eu nunca havia ouvido falar: Anna de Noailles (1876-1933). Havia um retrato dela pendurado na parede que imediatamente me chamou a atenção. Não sei explicar objetivamente por que aquela face me atraiu tanto. Não era uma tela famosa de um artista conhecido. Por isso me perguntei: não deveria ser apenas mais um belo rosto, apenas mais um belo olhar? Talvez eu tenha me interessado pelo fato de ela ter sido uma condessa e seu quarto ser tão simples, tão rústico... Ou talvez - e acho que aí estava o "sinal" - fosse o detalhe de uma senhora ali no museu ter pedido informação sobre um dos livros de Anna para o segurança, que não soube responder (o que foi bastante insólito, pois, pela primeira vez, vi um francês que não sabia tudo).

Quarto de Anna de Noailles, no Musée Carnavalet
Ainda que eu não tivesse razões para achar belo aquilo que se mostrava a mim por meio de meus olhos, tive vontade de dizer: "ah, que linda!"... Mais tarde, fui pesquisar na Internet sobre essa mulher. E descobri algumas passagens tocantes em suas poesias, nas quais ela versa sobre o amor, a natureza e a morte. Em Le coeur innombrable (1901), que foi justamente o livro que interessara a senhora no museu (seria uma intuição estética?!), encontrei um poema sobre o beijo - Le Baiser -, que me colocou em estado de arrebatamento. Aqui, só uma estrofe:

"Les frôlements légers des eaux et de la terre,
Les blés qui vont mûrir,
La douleur et la mort sont moins involontaires
Que le choix du désir.
"

["Os toques leves das águas e da terra,
Os trigos que amadurecerão,
A dor e a morte são menos involuntários
Que a escolha do desejo.
"]

Lendo isso, não consigo não achá-la linda, "ah, que linda!".

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sem comunicação

"L'Écoute": obra de Henri de Miller diante da Igreja de Saint-Eustache em Les Halles

Comecei a escrever algumas coisas no diário referentes à semana anterior. Queria reproduzir no texto a alegria que senti por passar alguns momentos agradáveis com os amigos em Paris. Até me empolguei para fazer isso hoje. Porém, não demorei muito para perceber que, nas poucas linhas que saíram, os nomes e os lugares que mencionei, as situações que descrevi e os próprios termos que utilizei só eram emocionantes e só faziam sentido para mim. Ou, na melhor das hipóteses, para os amigos que estavam comigo.

Alguém poderia dizer: "Mas há quem te entenda!" Sim, claro. Há sempre alguém que nos entende. Ou, pelo menos, que faz parecer que nos entende. Mas a questão não é saber da existência desses seres iluminados e iluminadores (penso no analista), sem os quais - diga-se de passagem - a vida seria terrível: o problema mesmo são as pessoas para quem gostaríamos de falar e que não podem - ou não querem - nos ouvir.

De repente, descobri-me sozinho, de novo. Porque era como se eu falasse para o vazio, sem poder contar com ninguém para ouvir aquilo (ainda que eu soubesse que sempre há), como se aquele sentimento de alegria que existiu fosse absolutamente indiferente, irrelevante mesmo, no isolamento existencial em que eu me encontrava. Exageros à parte (quase um melodrama, credo!), é preciso observar que, nesse meu egocentrismo, vê-se a contraposição do meu eu com um Outro que, assim como eu, também precisa comunicar seus sentimentos.

De fato, o mais terrível dessa descoberta foi perceber que todas as queixas que eu poderia dirigir a essa multidão surda, essa mesma multidão surda poderia dirigir de volta a mim. E eis que me vi, mais uma vez, na posição de "surdo", por incapacidade ou por falta de vontade de ouvir, isso pouco importa: o que eu não podia negar era que, em minha surdez, eu ouvia essa multidão dizer que o que sentiam não significava nada para mim, que eu não os entendia, que eu era surdo para seus corações... Como um eco. Antes fosse surdo (ou egocêntrico) de verdade para não ouvir nada disso!

Então, parei de escrever. Porque escrever estava me fazendo pensar nessas coisas chatas. Só escrevi esta parte do post porque, do ponto de vista terapêutico, julguei ser necessário pelo menos tentar falar sobre esse sentimento para não me sentir ainda pior. E eis aqui a parte "alegre" de um texto ingênuo (será coincidência que os alegres são sempre ingênuos?), que, por ser um registro, não chega a merecer ser esquecido:

* * *

A semana passada foi divertida porque recebemos visitas do Brasil. Estavam em Paris dois professores que conheço e dos quais gosto muito. A presença deles me fez bem: durante alguns dias, era como se a distância oceânica que me separa do Novo Mundo, bem como a estranha sensação de isolamento, de alguma forma diminuíssem.

Na quinta-feira, inventávamos caminhos à gauche et à droite do Sena, andando do Quartier Latin à Opéra, passando depois pelo Marais até chegarmos à Place de la Concorde, e só voltei a sentir saudades de São Paulo bem tarde da noite, quando cheguei à Maison du Brésil e repeti o rito diário de entrar sozinho em meu quarto. De todo modo, aquele havia sido um dia feliz: para além da alegria de poder apreciar lugares belíssimos como a Igreja de Madeleine e o Hôtel de Ville, o mais curioso foi perceber que, apesar de termos visto os lugares de sempre (acho que, com quase três meses de Paris, já posso falar assim), a companhia no passeio era nova, e isso fazia toda a diferença.

O almoço havia sido no restaurante Le Procope. É o mais antigo café de Paris - funciona desde 1686 - e ali estiveram homens como Rousseau, Voltaire, Danton, Robespierre, Benjamin Franklin... Fiquei emocionado de estar naquele lugar, que, após mais de 300 anos, ainda preserva uma decoração típica do século XVIII. Era como fazer uma viagem no tempo. Mas, mais do que isso, era uma viagem emocionante porque eu não a fazia sozinho. Por alguns instantes, esqueci-me das coisas que não gosto da França e dos franceses e apenas aproveitei a agradável companhia dos amigos, que, como mágica, tornavam aquele lugar especial.

Na verdade, até me comportei como um civilizado: coloquei o guardanapo no colo, comi a truta que pedi segurando o garfo com a mão esquerda, bebi o vinho e a água em taças diferentes, conversei amenidades observando atentamente os modos à mesa... Acho que fiz praticamente tudo que fazem os que seguem as regras de etiqueta, e quem ali me visse não diria logo de cara que havia um selvagem comendo num restaurante chique em Paris. Só não fui vestido com roupa social porque aí também já seria demais... Mas achei muito prazerosa a experiência de passar-me por "gente", não pela situação em si mesma, é claro, mas pela companhia dos amigos ali presentes. Paris sem os amigos seria muito sem graça: seria só civilização.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

"... il faut que je vous quitte"

Je ne voulais pas écrire ce texte avant la fin de mon stage à Paris. Mais comme où j'habite il y a toujours quelqu'un qui voyage de retour au Brésil, il est difficile de ne pas penser à ce moment dramatique (et c'est exactement l'adjectif) qui est le moment des adieux.

Je ne veux pas dire que retourner au Brésil est mauvaise: s'il l'était, l'ambiance de nostalgie pour mon pays d'origine ne serait pas si fort ici, entre mes collègues à la Maison du Brésil. Le problème sont les deux désirs opposés qui bataillent en nous: c'est comme si, à l'heure attendue de départ, nous voulions rester un peu plus... C'est comme dire: je veux partir maintenant, mais pas encore (on se souvient de saint Augustin?).

J'imagine que beaucoup de choses passent par la tête entre le stockage des bagages et l'embarquement dans l'avion. Surtout des choses qui se rapportent à ce qu'on a vécu et ce qu'on n'a pas vécu pendant les mois de résidence à l'étranger. Peut-être les sentiments de fierté et de frustration mélangent et ils nous laissent un peu confuses et ils nous empêchent de dire objectivement ce qu'on veut. Mais il est indéniable que, dans ce moment, tous sont touchés, ceux qui partent et ceux qui restent.

Comme disait mon ami zen-bouddhiste qui est parti au début d'août: l'attachement à des choses ou des personnes provoque des souffrances, puisque tout dans cette vie est transitoire. Sages paroles! Mais je voudrais savoir comment être plus détaché dans la pratique. Parce que certaines habitudes semblent inévitables, du moins pour moi: prendre des photos, acheter des souvenirs, écrire dans le journal, pleurer... Manie stupide de vouloir conserver ce que nous ne pourrions jamais posséder et perpétuer ce qui est nécessairement passager!

Du point de vue de la raison, je pense que nous ne devrions pas souffrir autant. Parce que, même avant d'arriver ici, nous savons la date exacte de la fin du période de stage. Bien compris, il n'y a aucune raison de pleurer. Cependant, je sais que la souffrance n'est pas toujours expliquée par la raison: c'est comme quand on passe par l'expérience de l'amour et on trouve en nous un étrange désir d'arrêter le temps, comme si ainsi on pourrait éviter la mort des sentiments et, d'une certaine façon, maintenir l'être aimé pour toujours.

Comment comprendre le coeur, le sentiment? Comment faire face à ces pulsions étranges que, au nom de l'amour, nous amènent nécessairement à la frustration, à la souffrance? Il me semble que la vie serait plus supportable si l'on avait les réponses... Mais qui pourrait nous assurer que chercher ces réponses n'est pas aussi une autre source de désillusion? Moi, je ne peux pas condamner ceux qui semblent avoir perdu la raison en refusant l'inévitable. En particulier, je suis sympathique à tous ceux qui nient la fin du temps de l'amour. Parce que, en étant honnête avec moi-même, je sais que si j'aimerais, je souhaiterais également que l'amour fût éternel.

J'ai trouvé un texte - presque un poème - qui décrit très bien ce que je sens en voyant mes collègues qui partent. C'est un petit morceau de l'une des chroniques que Cecilia Meireles a écrit sur les voyages qu'elle a fait à Buenos Aires et Montevideo en 1944. L'idée est un peu paradoxale, mais totalement vraie: pour continuer à aimer, il faut établir une certaine distance par rapport à ce qu'on aime. Loin d'être facile, il semble plus une question de survivance. Je pense que c'est exactement ce que je sentirai à mon départ de Paris.

"Je veux vous dire adieu mais je ne peux pas, Montevideo. Même le regard de vos chevaux m'attache à vous. Mais si je reste, je ne les verrai jamais peut-être, parce que le métier de l'homme est triste et facilement se vicie. Les yeux ne voient pas ce qu'ils voient toujours et le coeur s'habitue - et il l'oublie... - ce qui est constamment merveilleux. Donc, pour vous aimer, il faut que je vous quitte". (Cecília Meireles, Crônicas de viagem, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 147)