terça-feira, 31 de agosto de 2010

Estrangeiro, eu?

Em Paris, sinto-me duplamente estrangeiro: na documentação, por ter em meu passaporte o registro de nacionalidade brasileira, e aos olhos dos outros, por parecer um turista japonês. Já causei estranhamento em alguns franceses, que se surpreenderam um pouco com essa incompatibilidade entre quem sou perante as leis e quem eles esperariam que eu fosse segundo os estereótipos que projetam em mim. Mas, tentando ver a coisa pelo olhar alheio, imagino que não deva mesmo fazer muito sentido para os franceses a idéia de que o Brasil possa ter gente com cara de japonês: país confuso, devem pensar.

Sentimento de estrangeiro. Questão de identidade que, apesar de ter aparecido com força na atual situação, não é nova na história de minhas crises. Mesmo no Brasil, eu já me sentia estrangeiro pelo simples fato de não saber lidar direito com minhas raízes nipônicas, nem com a imagem da cultura japonesa que as pessoas próximas, inclusive do círculo familiar, associavam a mim.

Conversei bastante com meu analista sobre esse assunto antes da viagem. Tinha medo de surtar ao ter que enfrentar esse sentimento de "ser estrangeiro" estando tão longe de casa. Algo que pode parecer bobagem para muita gente, mas não para mim. E meu analista sabe disso! É por isso que hoje, após quase dois meses nessa condição de duplo-estrangeiro, posso ter alguma segurança de que não sou tão frágil como pensava e ficar feliz ao perceber-me assim. Ainda não sei quem sou, é verdade, mas isso não me parece agora tão grave. Afinal, somente os filósofos é que se preocupam com essas coisas. Eu quero apenas sobreviver.

De todo modo, não deixo de ficar surpreso com essa constatação. E confuso também. Pois, por mais que eu descubra alguma força em mim, não me sinto forte de jeito nenhum.

Ser estrangeiro é algo que não consigo dissociar do sentimento de fraqueza. Estar em meio a pessoas que sabem que você não pertence àquele grupo, em um lugar onde não se tem legitimidade para contestar as arbitrariedades impostas, sofrendo preconceito de civilizados evoluídos e ainda por cima tendo que depender de gente no Brasil para resolver os problemas que aparecem por lá... Tudo isso faz com que eu me sinta extremamente pequeno, insignificante, impotente, fraco mesmo. E, pior ainda, por me sentir duplamente estrangeiro, fico com a sensação de ser, no final das contas, duplamente fraco!

Mas o fato de eu conseguir suportar as crises interiores sem dar chilique já é um sinal de força. Sei disso. Não posso negar isso. Evidentemente, não é a força de alguém que parece dar passos firmes e saber exatamente para onde vai a cada decisão tomada: de minha parte, sinto como se andasse no escuro, como se a cada movimento eu pudesse cair num buraco ou trombar com um poste. Mesmo assim, a força está ali, sinto que estou vivo e, num certo sentido, sou forte. Porque eu poderia ficar imóvel ou simplesmente fugir para dentro de mim, como às vezes sinto vontade de fazer. No entanto, continuo, ainda que seja só para não ficar parado, avanço para sei-lá-onde por uma espécie de impulso interior, mesmo tateando, pisando em falso, cambaleando ou dando voltas, mesmo sem ver muito sentido no que faço, mesmo sem ver sentido em minha própria história, que às vezes parece ridícula...

Apesar do medo (e medo é o que eu mais sinto na condição de estrangeiro), é como se eu confiasse num final feliz. E vejam que não acredito em finais felizes! Porque sou absolutamente convicto de que a felicidade, assim como qualquer instituição humana que surge em meio às relações sociais, é frágil e passageira. Porém, estranhamente, apesar desse pessimismo tão grande - que, aliás, parece ser a única opinião coerente com meu sentimento de estrangeiro -, insisto em não abandonar a luta, em não "saltar fora da ponte e da vida", como diria Severino. Uma confiança totalmente irracional, absurda mesmo, quase religiosa eu diria, de que as coisas podem dar certo. Uma crença, um dogma, que aceito sem conseguir explicar. É..., talvez eu não tenha me afastado tanto da religião como tento fazer parecer.

Talvez eu sempre consiga olhar para trás, ver o pouco que andei e dizer: andei mais um pouco... Pequeno, fraco, estrangeiro, mas ainda vivo e me movendo! Acho que agora consigo entender um pouco melhor aquela afirmação tão forte e tão comovente da professora Scarlett em sua autobiografia (levando-se em conta, é claro, a desproporção entre a pequenez dela e a minha): "Hoje chego a surpreender-me com o percurso que fiz. Por isso, digo, com certo espanto: sobrevivi." Eu também sobrevivi. E sigo sobrevivendo. Mas a professora Scarlett disse isso pensando em sua busca pelo sentido da vida. Eu acho essa busca muito perigosa, porque ela nem sempre corresponde àquilo que gostaria de encontrar. Além do mais, não quero atribuir à vida um sentido que, possivelmente, ela não necessite ter. Talvez o verdadeiro absurdo seja justamente esse: uma vida que faça sentido...
 
Quanto a mim, prefiro apenas continuar achando graça quando algum francês me confunde com um japonês do Japão, quando erram meu nome ou quando se espantam com o fato de meu passaporte atestar que sou brasileiro. Outro dia entrei num restaurante japonês próximo à Cité Universitaire para comer sushi e achei graça por ser atendido pela mocinha que falava francês com jeito de japonesa, ela também estrangeira como eu (porém, menos estrangeira que eu). Achar graça dessas coisas me faz bem porque me ajuda a esquecer que sou estrangeiro e que minha casa - ah, minha casa (onde será?) - está tão distante, tão longe, que talvez só possa existir agora nos sonhos, mas não neste sonho que é morar em Paris.

PS: Este post é dedicado ao Mauro, meu analista.

sábado, 28 de agosto de 2010

Fragmentos de Amsterdam (3)

Red Light District

Conheci o Red Light District, que é a região de Amsterdam onde se encontram os sex-shops, as casas de show noturnas e os prostíbulos. Mas a maior atração eram as prostitutas das vitrines. Lindíssimas, algumas pareciam modelos ou atrizes de filme pornô de primeira. Eram completamente diferentes das barangas que andam pelas ruas dos puteiros no centro de São Paulo ou próximas ao portão principal da USP.

No Red Light District não era permitido tirar fotos. Por isso, limitei-me a perguntar para uma delas quanto era: "how much?". Pela pequena abertura na porta de vidro, a moça me disse muito atenciosamente: 50 euros, 20 minutos. Valor e tempo tabelados. Tudo legalizado, tudo muito profissional. Descobri uns vídeos no YouTube com gente que teve a idéia de filmar escondido. Por exemplo, este aqui (link).

Pigalle, em Paris
O ambiente era diferente também de Pigalle, onde acontece a vida noturna em Paris: as prostitutas parisienses ficavam escondidas (pelo menos antes da meia-noite), e eram os seguranças que me convidavam para entrar nos lugares: "Speak english? Information?". As prostitutas de Amsterdam mostravam-se de corpo inteiro pelos vidros das fachadas das casas e eram elas mesmas que convidavam seus clientes. Mostrar tudo ou esconder tudo? Estratégias diferentes de trabalho...

Estranhei o fato de aquele ser um lugar de passeio das familias: havia crianças passando em frente às vitrines. Outros costumes, outra moral. Mas gostei, porque fiquei com a impressão de que uma liberalidade assim deve ser um bom remédio contra a hipocrisia, sobretudo aquela que vem da moral religiosa.

Achei interessantíssima a maneira como a imagem das prostitutas era construída em Amsterdam: como manequins vivas em vitrines de um shopping do sexo. A luz vermelha sobre seus corpos (daí o nome do lugar) certamente ajudava a produzir um efeito incrível. No fundo, eram obras do artifício humano. Afinal, como diriam os antropólogos, as prostitutas são fabricadas, elas não nascem assim, são uma construção social. E, de fato, as lindas garotas do Red Light não eram meros objetos sexuais: eram verdadeiras obras de arte e poderiam muito bem estar expostas no museu do sexo (que aliás, existe em Amsterdam).

Van Gogh

Visitei o Museu Van Gogh e achei muito emocionante ver bem de perto os girassóis, os auto-retratos e outras obras. Já havia ouvido sobre as "pinceladas fortes" de Van Gogh, mas não tinha idéia de como eram. Só então percebi nas telas um relevo de tintas tão notável que fazia as imagens parecerem esculturas: como se o pintor esculpisse cores em vez de pedras. Fiquei maravilhado: escultura em matéria abstrata!

Não era permitido tirar fotos, mesmo sem flash. Mas entendi que essa regra valia apenas para os civilizados...



O que senti ali foi indescritível. E vejam que não entendo quase nada de artes! Mas é que não era tanto pelo Van Gogh em si. O que me emocionava mesmo era ver "ao vivo" algo que, anteriormente, eu só conhecia através de imagens captadas por olhos dos outros. Pareciam telas estranhas, apesar de serem as mesmas que eu possuía guardadas em minha memória.

Exatamente como quando vi a torre Eiffel... (para ver o post, clique aqui)

Agora sei que nenhuma foto dos girassóis ou dos campos de trigo conseguiria me fazer sentir o que eu senti ali. Porque não haveria como reproduzir em duas dimensões o efeito da luz sobre as cores projetadas para fora do plano vertical do quadro. Só mesmo ao vivo e chegando bem perto para ver.



Dava vontade de passar a mão sobre as imagens... Curiosamente, era a mesma sensação que tive diante das prostitutas do Red Light District. E, não por acaso, de um ponto de vista "estrutural", os elementos eram análogos e se relacionavam da mesma maneira em ambos os casos: entre o observador e a obra de arte, havia o vidro, obstáculo transparente que impede o observador de tocar o objeto desejado mas não de contemplá-lo, e a luz, responsável pelo efeito de realce das formas. Vale notar que, nos dois lugares, as fotos eram proibidas, o que tornava o desejo de observar o objeto ainda mais intenso!

Se bem que, no Red Light, era só uma questão de sacar 50 euros para realizar a mágica de atravessar o vidro... Sem Deus, tudo é permitido, diria Ivan. Mas às vezes um pouco de dinheiro ajuda, né?

Fragmentos de Amsterdam (2)

Bicicletas

À primeira vista, o que achei mais impressionante em Amsterdam não foi a quantidade de turistas (que era enorme), mas de bicicletas. Nunca vi tantas concentradas num espaço relativamente tão pequeno. Era uma quantidade absurda, inacreditável mesmo! Havia bicicletas estacionadas em todo lugar e as ciclovias eram movimentadíssimas. Era mais fácil ser atropelado por uma bicicleta do que por um carro...


Adorei ver as bicicletas com cestos grandes, destinados não apenas a carregar coisas, mas sobretudo filhos. Sinal de que a sociabilidade em Amsterdam não se limita à carona na garupa... Ou talvez, de que os filhos também sejam "coisas". A atmosfera humana era descontraída e até alegre, muito mais amena que em Paris. Acredito que as bicicletas estavam associadas a isso: se bem que, possivelmente, não como causa, mas como conseqüência.



Alimentação

Quanto à alimentação, descobri que os holandeses gostam muito de batata frita, sempre com muita gordura e maionese. Mas achei estranho não ver muitos obesos pelas ruas de Amsterdam. Talvez porque havia mais turistas que moradores nas ruas, ou também porque os moradores andam muito de bicicleta para queimar as gordurinhas...



Mercado de flores

Passei pelo mercado de flores, onde vi tulipas, girassóis e diversos outros tipos de plantas. Havia também cannabis sendo vendida, mas só a semente. As barracas eram organizadas de modo que as flores criavam um cenário de cores fortes e formas regulares, numa profusão de vermelhos, amarelos e verdes que se misturavam harmoniosamente. Todo esse espetáculo de cores contrastava com a lembrança construída nas últimas semanas sobre os tons pastéis das ruas de Paris.

E por falar em girassóis, falta agora contar o que vi no Museu Van Gogh...


sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Fragmentos de Amsterdam (1)

No último final de semana (21 e 22) visitei Amsterdam. Minha primeira viagem para fora do território parisiense foi também minha primeira viagem para fora da França. Queria escrever um único post com tudo o que vi. Mas talvez, por ter visto tantas coisas diferentes, a unidade pretendida no relato de minhas impressões seja impossível. Falarei, pois, de maneira truncada. Mesmo porque tudo o que tenho são fragmentos de lembranças tão díspares que eu jamais conseguiria unir de verdade.

Visão geral

Achei Amsterdam fascinante. Além do passeio de barco, que me deu uma visão panorâmica do local, não tive tempo de ver muita coisa. Pois o hotel escolhido pela agência de viagens ficava muito longe do centro da cidade, o que consumia bastante tempo na logística do transporte. Mesmo assim, consegui ver o Museu Van Gogh e ainda me divertir andando um pouco pelas simpáticas ruas desse lugar que, pela liberalidade dos costumes, me provoca e me encanta.


Encontro

Os canais cortam a cidade em várias direções e, quando vi as fachadas dos prédios à beira deles, vislumbrei uma espécie de acordo entre os homens e as águas. Encantei-me com o cenário porque, por um lado, as águas pareciam querer avançar ameaçadoramente em direção às moradas dos homens, mas, por outro, os homens mesmos pareciam consentir o risco ao permitirem ousadamente que as águas chegassem tão perto. No final, nem ameaça nem ousadia: apenas equilíbrio e uma atmosfera humana amena, muito mais leve que a de Paris.


Cannabis

Nas portas dos cafés era possível sentir o cheiro de maconha (ou outras drogas, não sei bem). Apesar de não ter entrado em nenhum desses estabelecimentos - talvez por falta de coragem, talvez por puro preconceito -, pude sentir os aromas do lado de fora e pensei: "Amsterdam tem um cheiro característico!"

Ora, depois me lembrei que os brasileiros caracterizam os parisienses com piadas que envolvem o olfato: ouve-se muito que os franceses tomam pouco banho e usam muito perfume, ou seja, que o cheiro dos franceses é característico. Acredito então que não seria absurda a idéia de distinguir Paris e Amsterdam pelo odor de suas ruas, ou, pelo menos, pelos efeitos distintos de cada um desses odores.

A propósito: li a propaganda do Hash Marihuana & Hemp Museum, que anuncia uma exposição permante sobre a história da cannabis (o nome científico da maconha), com indicação dos usos medicinais e da apropriação cultural dessa planta. Infelizmente não deu tempo de entrar. Mas a impressão é de que a cannabis é um símbolo de Amsterdam. Ou talvez, mais do que isso, a cannabis seja a marca de uma sociedade que não vê tanta contradição entre as leis e os costumes.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Sobre mulheres

Garance Doré
Perguntaram-me se eu achava as mulheres francesas bonitas.

A resposta é difícil, não só porque há mulheres lindíssimas no Brasil, mas também pelo fato de beleza feminina ser, assim como futebol, tão-somente uma questão de opinião. Além disso, deve haver tantos tipos de mulheres maravilhosas na França que seria bem complicado definir o que exatamente significa uma "mulher francesa bonita".

Polêmicas à parte, respondi que sim à pergunta. Afinal, vi nas ruas de Paris algumas mulheres que realmente me encantaram. Em parte, porque correspondiam a um estereótipo da mulher francesa que eu mesmo havia adotado como meu estereótipo: corpo delicadamente esguio, roupas sobriamente elegantes e um jeito de andar que me lembra as modelos em passarela. Mas não era apenas isso. Para além do meu próprio estereótipo, percebi claramente um certo charme, um encanto diferente e bem peculiar, que a mera descrição do meu padrão de belle femme não era suficiente para explicar.

A minha mulher francesa ideal (lembrem-se que isto é apenas uma opinião) tem um não-sei-quê de charme que vai além do tipo físico e das vestimentas. É o charme que só vejo nas expressões de tédio. Sim, tédio. Mas não o tédio de aborrecimento, aquele que sempre vem acompanhado de cara feia, como quando se espera alguém que não chega na hora marcada. Na verdade, é como se fosse uma embriaguez, um entorpecimento. Um tédio que madames e mademoiselles desenvolveriam como um charme depois de respirarem excessivamente a atmosfera dos cenários entontecedores das ruas de Paris.

Lembro-me de uma jovem no Jardim de Luxembourg que olhava para o vazio enquanto fazia pose de manequim. O fato de ela ter belas coxas à mostra era apenas um detalhe (em São Paulo isso seria vulgar, mas aqui é um delicioso costume de verão, adoro!): eu nunca havia visto uma cara de tédio tão deslumbrante como aquela... Não costumo gostar de gente esnobe, mas no caso dela o ar de altivez tornava-a ainda mais sensual. Como uma ninfa cansada de sua própria condição de divindade, ela parecia meio enfastiada por conta da certeza de que poderia ter aos seus pés tantos homens quantos desejasse. Estranhamente (para mim), seu semblante fazia transparecer uma espécie de torpor de indiferença, de tédio, enfim, de charme.

Andei pesquisando alguns blogs de moda (sim, fiz isso!) para tentar entender melhor, digo, mais objetivamente, esse charme tão misterioso de algumas femmes françaises que vejo por aqui. Pois imagino que, talvez, os acessórios que elas usam no vestuário ajudam na construção dessa imagem - a cara de tédio - que tanto me impressiona. E, meio que por acaso, acabei descobrindo um vídeo-propaganda dos lenços de seda "carré" - "quadrado" em francês - fabricado pela casa de moda parisiense Hermès.

Pelo que li, esses lenços caríssimos da Hermès são o sonho de consumo das "mulheres francesas" (seja lá o que for isso). A despeito do fato de ser uma propaganda, o vídeo que mostra a loirinha da foto abaixo usando seu carré traduz muitíssimo bem em imagens e sons essa minha experiência pessoal de ficar étonné, frappé, saisi [são palavras que expressam espanto, comoção, admiração, surpresa...] sempre que encontro um de meus estereótipos andando em carne e osso (e belas roupas também) pelas ruas de Paris.

http://www.youtube.com/watch?v=w6wUfyo2AfU

PS: A imagem que aparece lá em cima no post foi extraída de: http://www.garancedore.fr/en/2009/01/09/la-femme-francaise/

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

BnF

Dois amigos me perguntaram como é pesquisar na Bibliothèque nationale de France, e eu fiquei devendo a resposta.

A BnF (é mais fácil a sigla) é um lugar "faraônico", para usar a expressão de uma colega. Enquanto biblioteca nacional (como a Library of Congress, nos EUA), possui em seu acervo tudo o que é publicado na França. A bibliografia da minha pesquisa é quase inteiramente de textos em língua francesa, e, por isso, a BnF é o lugar perfeito para o trabalho na tese. Como em Paris nada é de graça, há uma taxa para usar as salas de pesquisa. Paguei pela carteirinha o correspondente a um ano (27 euros), que é o período que ficarei por aqui.

A BnF é um pouco difícil de utilizar, mas vale muito a pena. Para entrar, deve-se fazer reserva de mesa pela Internet. E o problema é que nunca há lugar livre. Em geral, é preciso esperar alguém faltar - o sistema libera a mesa após meia hora de atraso da pessoa que reservou -, o que sempre acontece, pelo menos agora nas férias. Imagino que as mesas fiquem ainda mais concorridas a partir de setembro, quando as aulas começarem, mas já me ensinaram alguns macetes para aumentar a chance de conseguir um lugar (segredo!).

Nem todas as mesas têm cabo de Internet e, como a biblioteca é freqüentada por civilizados, os cabos disponíveis deveriam ser compartilhados para que todos pudessem usufruir do bem comum. Assim como as teorias políticas democráticas, isso quase sempre funciona na prática. Certa vez, eu estava usando o cabo da mesa da frente, e, quando a mulher que havia reservado a mesa chegou, ficou bravíssima comigo e disse (em francês) que o cabo era dela porque ela precisava e não poderia dividir etc., etc., etc.

Minha ala (no chamado "site" François Mitterrand) fica no prédio oeste, nível "rez-de-jardin". Há uma parte do acervo que é de livre acesso ao público de pesquisadores. Eu costumo ficar na seção de filosofia e religião (sala K) ou na de literatura francesa (sala V), pois consigo trabalhar com muita coisa que encontro nas estantes da própria sala. Mas quando o livro não está disponível, é preciso pedir pelo sistema: em uma hora (mais ou menos) o material chega ao balcão da bibliotecária para ser retirado. Há ainda salas especiais para ler em microfilme: tive que usar uma vez quando pedi um livro muito antigo.

Em suma, não há nada que eu precise ler que eu não encontre na BnF. Mesmo a biblioteca da USP torna-se pequena quando comparada à BnF. As condições de trabalho aqui são muito melhores e a experiência de pesquisar em Paris tem sido maravilhosa. Mas agora, uma anedota, senão este post vai ficar muito chato.

Nunca vou me esquecer do primeiro dia que fui trabalhar na BnF. Eu estava muito feliz por estar ali: havia conseguido um lugar e tudo estava indo muito bem. Até que, às 17h, o alarme do prédio começou a tocar ensurdecedoramente e ninguém sabia o que estava acontecendo. Qu’est-ce qui se passe? [O que acontece?], perguntei ao bibliotecário. E ele respondeu: Je ne sais pas. Accident peut-être [Não sei. Acidente talvez].

Foi curiosa a reação dos pesquisadores. Durante vários minutos, eles apenas entreolhavam-se sem sair do lugar. E, mesmo quando começaram a se levantar das cadeiras, moviam-se lentamente, com muito decoro. Alguns fizeram fila para devolver os livros emprestados no balcão. O Ruy Fausto, um professor da USP que costuma trabalhar na BnF, simplesmente tampava as orelhas com as mãos e fazia uma cara de quem queria silêncio para continuar lendo.

Contar isso agora é engraçado, mas fiquei muito assustado naquele dia. Ainda mais porque, enquanto o prédio era evacuado, saí pela ala errada e dei de cara com as portas trancadas. Não havia nenhum aviso sonoro dizendo que era para pegar a saída de emergência, somente aquele alarme ensurdecedor. E pensar que eu estava em um prédio moderníssimo, que deveria ter um esquema de segurança digno de um país como a França...

Mas, enfim, fomos todos pelo caminho discretamente indicado pelo bibliotecário, em fila, como pessoas civilizadas. Depois, próximo da porta de saída, ouvi uma mulher reclamando com os seguranças, dizendo que havia entrado em pânico. O detalhe é que ela falava tudo com tanta serenidade que, se não tivesse ouvido o que aquela mulher dizia, eu jamais suspeitaria que ela estava com medo.

Os seguranças, por sua vez, também respondiam com total calma, voz baixa, e aquela cara de indiferença que os franceses sabem fazer muito bem. Tive a sorte de conseguir pegar minha mochila, mas depois que saí, vi que várias pessoas estavam com a pasta que a BnF empresta para carregarmos nossos pertences dentro do prédio. Todos esperavam alguma informação para saber quando poderiam entrar de volta e continuar os trabalhos.

Alguns, indiferentes à situação, trabalhavam com seus notebooks ali mesmo fora do prédio, sentados na escadaria diante do Sena. Tive vontade de fotografar, mas fiquei com receio de que eles não gostassem. Além disso, eu havia chegado na semana anterior e ainda não sabia falar com ninguém. Só tive coragem de falar com o Ruy Fausto, que passava por ali pensando algo em voz alta. Cheguei perto e perguntei: O que aconteceu, professor? E ele: Ah, acho que é só uma ameaça de bomba. Puxa vida, bomba! Não era à toa que Paris parecia um filme...

Fiquei imaginando que, se fosse um ataque de guerra, os intelectuais ali presentes teriam todos morrido trabalhando em suas pesquisas! Surreal... Cansei de esperar (eram quase 19h) e acabei indo embora sem ver o desfecho daquela cena. Mas voltei curioso no dia seguinte e perguntei ao segurança o que havia acontecido. Ele disse algo sobre "sécurité". Não entendi porque ele falou muito rápido e fiquei sem jeito de perguntar de novo. Mas como não saiu nada nos jornais, penso que deva ter sido apenas treinamento.



Aqui está a página com o vídeo institucional da BnF. A música dá um pouco o tom do clima do lugar: http://www.bnf.fr/fr/la_bnf/sites/a.bnf_en_images.html

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Paris dos vivos e dos mortos

Não há dúvidas de que os parisienses têm um interesse fortíssimo pela história. Vejo em toda parte placas indicando os nomes ilustres de gente que morou em determinados prédios: "Antiga habitação de Heloísa e Abelardo... ", "Nesta casa Vincent Van Gogh viveu...", etc. Isso sem contar os museus e as bibliotecas de Paris, que narram a história da civilização por meio das artes e dos livros que, de uma forma ou de outra, apresentam as trajetórias de vida de personalidades importantes.

Construção de uma história para a elaboração de uma identidade social, poderia eu dizer fazendo cara de sociólogo... Contudo, quando penso nesse interesse dos parisienses pelos personagens históricos, descubro outra coisa. O grande problema deles, parece-me, está na relação que os vivos mantêm com seus mortos. Tudo se passa como se as pessoas aqui só existissem na medida em que soubessem que os vivos de hoje moram nas casas dos mortos do passado. Mortos famosos, evidentemente.

Não, não estou falando de religião. Porque essa história que se constrói com as placas afixadas nas paredes dos prédios não é apenas culto aos mortos. O que chama minha atenção é outra coisa: parece-me que os parisienses vêem necessidade de incluir os mortos entre os muitos assuntos que precisam falar para se considerarem civilizados. Como se falar de quem já morreu, sobretudo dos mortos ilustres, fosse uma maneira dos vivos civilizados saberem quem são.

Um francês poderia dizer: sou cidadão da França, e, por isso, sei falar sobre artes, literatura, política etc., etc., etc., e também sobre um bocado de gente importante que viveu na França, como Marie Curie (que, apesar de ter nascido na Polônia, mudou-se para Paris e recebeu duas vezes o Prêmio Nobel), Albert Camus (que era argelino, mas foi um dos grandes escritores francófonos), Jean-Jacques Rousseau (que era genebrino, mas, enfim, foi inspirador da Revolução), blá, blá, blá...

Durante o final de semana, fui visitar alguns mortos. No sábado, passei pelo cemitério de Montparnasse para ver o túmulo de Sartre e Simone. Achei curiosíssimo o que encontrei ali: além das flores, as pessoas também depositam moedas e bilhetes de metrô sobre o túmulo. Não sei por que fazem isso. Vi também marcas de beijo na lápide, coisa que achei que só acontecesse em túmulos como o de Oscar Wilde (que está em outro cemitério, o de Père Lachaise). Mas meu espanto total foi quando vi uma mulher deixar uma foto junto com uma moeda sobre o túmulo e, ao final, falar alguma coisa em voz baixa. Era como se aquele fosse uma espécie de túmulo de santo. E logo com Sartre, que era declaradamente ateu! Coisas da história de Paris...


No domingo, entrei finalmente no Panthéon, que não deixa de ser um cemitério também. Grandioso, majestoso, com estilo neoclássico, mas ainda assim, um cemitério. Foi encomendado por Louis XV, que queria que o edifício fosse a basílica de Sainte Geneviève (Santa Genoveva, a padroeira de Paris). Porém, o governo dos revolucionários decidiu que não seria igreja, e sim um mausoléu para os heróis da França. A inscrição que colocaram no alto da entrada foi: "Aux grands hommes, la patrie reconnaissante" [literalmente: "Aos grandes homens, a pátria agradecida"]. Vejam que a laicização não impediu que o culto aos mortos continuasse a ser prestado...

Achei interessante ouvir o guia, que explicou todo o processo para se panteonizar uma pessoa. O candidato precisa fazer jus ao título de "grande homem", ter algum tipo de reconhecimento público por serviços prestados à nação e, obviamente, ser cidadão francês. Quase um processo de canonização de um santo nacional! Fiquei até curioso para saber que tipo de milagre esses santos patrióticos realizam. Talvez eles façam os selvagens falarem francês (claro) para que se tornem civilizados...

Em particular, queria muito ver o túmulo de Rousseau no Panthéon. Achei que fosse me emocionar ao chegar perto dos restos mortais do morto que estudo, mas não senti absolutamente nada. Só fiquei com vontade de colocar a mão naquele caixote estranho, que mais parecia uma casa de cachorro. Infelizmente, o túmulo é todo cercado por grades ("O homem nasce livre e por toda parte encontra-se a ferros", Contrato Social, livro I, capítulo 1). Acho que eu queria sentir mais de perto a causa material de minha vinda para a França. Ainda bem que fetiche não é coisa de selvagem para os parisienses, que gostam muito de souvenirs...

Aliás, por falar em souvenirs, vi muitos numa lojinha no Panthéon. Além de um busto de Voltaire e das insuperáveis torrinhas Eiffel (sim, elas estavam ali me perseguindo!!!), encontrei também bonequinhos do Pequeno Príncipe. É que o Saint-Exupéry tem uma placa de homenagem ali, apesar de não ser um herói panteônico. Não gosto do Principezinho, pois aquela idéia da raposa de que somos eternamente responsáveis por aqueles que cativamos me causou muitos problemas pessoais... Mas, mesmo assim, penso que talvez o personagem de Saint-Exupéry merecesse um lugar no Panthéon, pelo fato de tratar-se de um dos livros mais lidos de todos os tempos.


Voltemos para o meu morto favorito. Sim, eu queria tocar no túmulo de Rousseau... Mas notei que havia câmeras por toda parte e, como preciso parecer civilizado para poder andar por aqui, limitei-me a tirar fotos. Infelizmente, acabei me esquecendo de deixar uma moeda ou um bilhete de metrô para o morto. Podia ter pelo menos levado flores, já que ele também era botanista... Queria pedir para o Rousseau me iluminar na escrita da tese, porque lá na USP a gente não consegue fazer história da filosofia apenas colocando uma placa com o nome do filósofo estudado na capa do trabalho. Se bem que, ali, a história é outra. Porque os mortos no Brasil não costumam ter placas nas casas e, o que é pior ainda, eles morrem até mesmo em nossas memórias...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Um mês

Hoje, dia 12, faz um mês que cheguei a Paris. Tentei escrever algo sobre isso, mas não consegui. Então, este é apenas um post para registrar que as minhas impressões ficam mais difíceis de serem descritas à medida que o tempo passa. É como se eu perdesse, a cada dia, a sensibilidade para perceber o mundo ao meu redor. Triste isso...

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O som do silêncio

Alguns dias antes de vir para Paris, um professor de literatura francesa que sabia de minha viagem despediu-se de mim e disse em tom de brincadeira: "volte francisé".

Voltar afrancesado... Que recomendação interessante! Porque, ao dizer isso, ele parecia um divulgador daqueles cursos de langue et civilisation françaises, nos quais se ensina não apenas como falar francês, mas também como se conduzir em meio a pessoas "civilizadas" (leia-se franceses).

Gosto muito desse professor. Ele é sempre extremamente simpático comigo. Por isso, quero acreditar que sua recomendação tenha sido feita com coração puro. E, de fato, não vejo nele aquele ar de superioridade dos franceses que, ao tomarem como missão difundir sua língua e sua cultura pelo mundo, consideram-se civilizadores. Ainda bem, pois seria muito triste ver um nativo das terras tropicais facilitar o trabalho de dominação de nossos colonizadores europeus.

Mas essa minha birra em relação à "civilisation française" não significa que eu a rejeite sumariamente. De modo algum!

Afinal, não apenas estou adorando viver em Paris, como também sei que só vim para cá porque faço parte de um departamento de filosofia radicalmente "francisé", cujos professores atuais tiveram, quase todos, passagem formativa por universidades na França. Além do mais, não posso esquecer que o autor que estudo - possivelmente ainda com paixão -, Jean-Jacques Rousseau, é considerado um dos melhores escritores de língua francesa de todos os tempos.

Também não posso deixar de reconhecer que, no fundo, gosto de estar entre civilizados. Apesar do esnobismo inerente à civilização, não me parece de todo desagradável conviver com pessoas "francisées". Na verdade, é até mais seguro: a chance de morte numa discussão entre civilizados é razoavelmente baixa, uma vez que as agressões são, em geral, mais verbais que físicas (não que as agressões verbais não sejam mortais algumas vezes, mas, enfim, vocês entenderam...).

Contudo, a segurança tem um preço. Por só saberem falar, os civilizados às vezes falam demais, e isso para mim é um saco. Fico com vontade de morrer com esse desrespeito ao silêncio! Em Paris, mais do que em São Paulo, há muito estímulo para se cultivar aquele tipo de vida social "parlante". Para quem não sabe, refiro-me àquelas pessoas - em geral bastante comunicativas - que adoram exibir conhecimentos gerais para impressionar os outros, como se o próprio ato de falar (não importa o quê) fosse sinal de civilidade.

Civilizados costumam ser assim. Não agem desse jeito por mal: eles são assim, é próprio da cultura deles. Mas curioso mesmo é quando se reúnem em bando: nessas horas, é comum observá-los conversando sobre artes, literatura, música, cinema, teatro, viagens, política, economia, gastronomia e até futebol com muita empolgação, sempre apresentando informações históricas com muitos nomes, datas e narrativas de fatos, além de dados técnicos e descrição de lugares, tudo muito bem articulado em falas rápidas, persuasivas e, quase sempre, temperadas com humor.

Talvez aquele professor de literatura tenha imaginado que eu poderia voltar assim: sabendo sustentar uma conversa de maneira inteligente e eloqüente a despeito do assunto tratado, como se tudo o que realmente importasse para a vida em sociedade fosse falar sobre artes, literatura, música, cinema, teatro, viagens, política, economia, gastronomia e futebol, descrevendo nomes, datas, fatos, lugares etc., etc., etc. Como se tudo o que eu precisasse fazer para provar meu afrancesamento fosse falar, falar, falar...

Ainda bem que sou meio surdo. Porque a incapacidade de ouvir tudo o que os civilizados falam me impede, em certa medida, de falar com eles. E todos sabem que, se não falar, jamais serei civilizado, o que aliás seria ótimo se pensasse apenas nos meus ouvidos. No entanto, não sou (nem quero ser) completamente surdo, ou metaforicamente, não sou (nem quero ser) completamente selvagem. Afinal, eu também gosto de me comunicar - o blog está aí para provar isso - e até consigo falar coisas que interessam alguns civilizados. A questão, na realidade, parece ser apenas esta: qual o limite de minha audição?

Ainda no registro das metáforas, se eu pudesse falar da civilidade como uma doença, diria que seu principal sintoma é a verborréia. Contudo, no caso dessa doença, não desejo estar completamente curado nem ser imune a ela, pois isso significaria não ouvir nada, isolar-me no interior de meu próprio silêncio. Amo o silêncio profundamente, claro, mas isso não significa que eu não goste de um pouco de civilização - queria saber falar de música, por exemplo, e a canção que me vem à memória neste momento é a de Simon & Garfunkel, que fala sobre tocar o som do silêncio...

Bom seria se as duas coisas pudessem se combinar: uma sociedade em que, mesmo sem palavras, a comunicação pudesse ser estabelecida pela troca de olhares, pelos gestos de carinho, quem sabe até pelos sorrisos... (como disse nesse post aqui). As pessoas não falariam tanto e nem por isso deixariam de se relacionar. De todo modo, voltarei ao Brasil meio afrancesado: desse mal não posso me livrar! Mas penso que, se não precisasse falar tanto, se pudesse tocar o som do silêncio, voltaria sem tanta crise.

O vídeo que mais gosto da canção que mencionei está neste link do YouTube:

terça-feira, 10 de agosto de 2010

A metamorfose do olhar

Queria escrever, mas não consigo! Então, este post é apenas para registrar a impressão acerca do auto-estranhamento da última semana.

Chegaram à Maison du Brésil um colega de doutorado, Vladimir, e sua esposa, Christine. Após terem se instalado, saí com eles na quarta-feira para ajudá-los a resolver as questões básicas dos primeiros dias.

Felizmente, conseguimos fazer tudo e, depois, ainda sobrou tempo para passearmos um pouco. Fomos ao Quartier Latin, passamos pelo Panthéon, pela Sorbonne, entramos na livraria Gibert Joseph, depois vimos a Notre Dame e, finalmente, andamos um pouco pelo Sena até o Hôtel de Ville.

Fiquei emocionado ao ver a emoção do casal diante de tudo. Lembrei-me de mim no primeiro dia que pisei em Paris. E vejam que não faz muito tempo: ainda não completou um mês que estou aqui. Mesmo assim, não havia dúvidas de que minha reação já não era mais igual à deles.

De repente, vi a mim mesmo deslocado da posição de ator para a de espectador. Naquele momento, o encanto da "primeira vez" era só deles. A mim, cabia apenas assistir. Em relação ao meu primeiro dia, Paris já me parece um pouco diferente. Ainda encantadora, claro, mas não do mesmo jeito.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Fechar os olhos

Nos últimos dias, recebi vários e-mails de amigos do Brasil. Fiquei muito feliz em saber que alguns estão acompanhando este blog, e mais feliz ainda por sentir o carinho daqueles que queriam que eu contasse outras coisas além das publicadas.

Ontem, quando saí da Bibliothèque nationale de France às sete da noite (ou da tarde), voltei direto para casa. Não fui passear, como costumo fazer, porque queria escrever sobre esse "além". Palavra mágica que, pensava eu, me faria vencer a distância oceânica da saudade.

Estava no metrô, vindo de Quai de la Gare para descer em Denfert-Rochereau. Enquanto pensava, o sol bateu em meu rosto. Instintivamente, fechei os olhos. E, por alguns instantes, senti o corpo mais leve. As possibilidades pareciam ter aumentado, porque pela imaginação eu poderia abrir os olhos em São Paulo, encontraria meus amigos na USP, tomaria café com eles...

Ora, ora... Paris é um sonho, claro, mas um sonho real. Ao abrir os olhos, eu não estava no Brasil, obviamente. Continuava no metrô, rumo a Denfert-Rochereau, ainda em busca de palavras que, pronunciadas na ordem exata, pudessem me levar para além de meu próprio corpo.

Já em casa (ou melhor, na Maison du Brésil), lembrei-me de Clarice: "há impossibilidade de ser além do que se é - no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu quase normalmente -; tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo".

Consolo na literatura. Se ela estiver certa, mesmo continuando a ser o que sou e a estar onde estou, poderia ir além de mim mesmo. Meu próprio corpo faria isso por mim nos deslocamentos que realizo rotineiramente em Paris. E nesse além, minha saudade encontraria um alento. Porque eu saberia que meu começo, o lugar originário (e longínquo) de onde saiu esse meu coração selvagem, é e sempre foi o Brasil.

Então, de um certo ponto de vista (pois em Paris tudo é essencialmente visual), naqueles poucos instantes em que fechei os olhos ontem no metrô, ultrapassei-me necessariamente. Fui além do que eu era. Mesmo porque, quando abri os olhos, já não era mais o mesmo de antes. Assim como não serei o mesmo de agora no dia em que voltar à minha terra natal.

Seria possível o retorno ao mesmo? Penso que não, porque o mesmo nunca é o mesmo. As coisas sempre mudam. As pessoas sempre mudam. Ainda que, em aparência, tudo permaneça exatamente igual.

Se fechasse os olhos, Paris continuaria bela? Questão filosófica que admite múltiplas respostas. Quanto a mim, que não sou filósofo - sou apenas um bolsista da CAPES em estágio de doutorado no exterior -, prefiro dizer que não sei. Mas sinto que, a cada vez que abro os olhos, Paris está um pouco diferente. 

Hoje preferi falar sem imagens. Achei que, dessa maneira, seria como ficar de olhos fechados. Mas pensei em uma trilha sonora. E, dado o teor deste post, considerei que a mais adequada seria esta:


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terça-feira, 3 de agosto de 2010

Mona Lisa e seu tempo

Sinto que, em Paris, o tempo passa de um jeito diferente. E não penso que seja apenas por conta da confusão mental causada pelos dias longos de verão na Cidade Luz, nos quais a claridade do sol não desaparece antes das dez da noite. Tentarei explicar.

Nos primeiros dias após ter me estabelecido e começado a passear, a impressão que tive foi de que as horas voavam e que faltava tempo para visitar tantos lugares interessantes. Mas depois percebi que, na verdade, o que acontece é algo mais complexo: uma fratura no tempo. Em Paris, vivo em dois tempos.

Um é o tempo do relógio, que, de fato, passa muito rapidamente e sempre me deixa com o sentimento de frustração por não ter conseguido fazer tudo o que eu desejaria. Mas, paciência. Afinal, Paris é um lugar de sonho, e nos sonhos os desejos nunca se realizam. Aliás, tenho aprendido a importância da realidade como válvula de escape para a imaginação: confesso que fujo para o mundo real sempre que rêver [sonhar] Paris se torna insuportável para mim.

O outro é um tempo que não é cronológico, mas psicológico. Ele passa sem a mesma pressa do tempo do relógio e está diretamente ligado ao encantamento de estar em Paris. Em minha cabeça, seria algo como entrar num estado de êxtase, ser arrebatado para uma outra dimensão, para um outro ritmo de existência. Tudo se passa como se eu fosse lançado para dentro de um filme em câmera-lenta, no qual as coisas acontecem bem vagarosamente, em alguns casos, quase parando.

Experimentei o contraste dessa dupla temporalidade quando visitei o museu do Louvre. Cada tela, cada escultura, cada peça que eu via me raptava para seu próprio tempo e me fazia parar, como se cada uma desejasse o desaparecimento de todo o restante do acervo e me elegesse como admirador exclusivo para sempre. Nunca senti meus olhos tão cobiçados! Meu olhar deixava-se prender, entregava-se sem resistência à imobilidade do estado contemplativo. Contemplar uma obra de arte ali era como congelar a cena do filme de minha vista. E a cada congelamento de imagem, uma relação de amor entre mim e a coisa contemplada se estabelecia.

No entanto, o tempo do relógio continuava correndo, implacável como sempre, exigindo de mim que eu trocasse um objeto por outro, freneticamente, alucinadamente, irrefletidamente... E, a cada instante, eu era lembrado que meu tempo era dividido, que o amor não era único e nem poderia durar uma eternidade, que existem limites para tudo, até mesmo para as relações mais exclusivas. A cada instante, eu era forçado a mudar, a romper, a me afastar. Mudança: sinônimo de separação...

Dói sentir que esquecer o que passou é, às vezes, uma necessidade... Imagens tão marcantes no momento em que me impressionaram, mas que desaparecerão de minha memória mais cedo ou mais tarde, à medida que novas imagens forem enchendo minhas vistas insaciáveis pelo novo. Sim, porque no fundo sou eu que desejo mudar, acompanhando o tempo que me força a desejar a mudança. Nesse sentido, a mudança é necessária porque o desejo de mudar é inevitável, porque esse desejo surge mesmo que jamais o busquemos, pelo simples passar do tempo.

Museu: símbolo da memória... Mas também do esquecimento! As obras estão ali para serem lembradas como que para resistir à própria lógica do tempo, que desloca para trás tudo que não é presente. De qualquer maneira, fica a perplexidade. Como é possível não levar conosco para sempre o que chamamos de inesquecível? Como é possível que o belo não seja eterno e dure apenas enquanto nossas lembranças conseguirem retê-lo? São questões que, com o passar do tempo, vêm e vão.

O Louvre é imenso. Impossível ver tudo em um único dia. Não há tempo suficiente para isso, ainda mais sabendo que meu tempo mesmo se divide em tantos tempos de tantas obras. Mas uma das obras, talvez a que conte com maior número de admiradores que desejariam passar um tempo contemplando-a, chamou mais minha atenção: Mona Lisa. Não consegui me aproximar dela, como se vê pela foto ao lado. No entanto, a famosíssima tela de Da Vinci me fez pensar sobre o descompasso temporal que tenho experimentado.

Impassível, ela apenas observava o amontoado de gente tentando fotografá-la enquanto se acotovelam entre si o tempo todo. Mas, estranhamente, Mona Lisa não parecia exigir exclusividade, mesmo porque, eram tantos os olhos que se dirigiam a ela ao mesmo tempo que não seria possível uma relação com apenas um único escolhido. Assim, tive a impressão de que o tempo de amar aquela obra em particular não era incompatível com o tempo de amar todas as outras. Porque o tempo ali não era exclusivo. Era um tempo de todos, ainda que não fosse de ninguém. Porque, na verdade, o tempo todo naquele momento era única e exclusivamente dela.

É... Parece que o tempo que passei com Mona Lisa me fez pensar em muitas coisas!