quinta-feira, 30 de setembro de 2010

"... il faut que je vous quitte"

Je ne voulais pas écrire ce texte avant la fin de mon stage à Paris. Mais comme où j'habite il y a toujours quelqu'un qui voyage de retour au Brésil, il est difficile de ne pas penser à ce moment dramatique (et c'est exactement l'adjectif) qui est le moment des adieux.

Je ne veux pas dire que retourner au Brésil est mauvaise: s'il l'était, l'ambiance de nostalgie pour mon pays d'origine ne serait pas si fort ici, entre mes collègues à la Maison du Brésil. Le problème sont les deux désirs opposés qui bataillent en nous: c'est comme si, à l'heure attendue de départ, nous voulions rester un peu plus... C'est comme dire: je veux partir maintenant, mais pas encore (on se souvient de saint Augustin?).

J'imagine que beaucoup de choses passent par la tête entre le stockage des bagages et l'embarquement dans l'avion. Surtout des choses qui se rapportent à ce qu'on a vécu et ce qu'on n'a pas vécu pendant les mois de résidence à l'étranger. Peut-être les sentiments de fierté et de frustration mélangent et ils nous laissent un peu confuses et ils nous empêchent de dire objectivement ce qu'on veut. Mais il est indéniable que, dans ce moment, tous sont touchés, ceux qui partent et ceux qui restent.

Comme disait mon ami zen-bouddhiste qui est parti au début d'août: l'attachement à des choses ou des personnes provoque des souffrances, puisque tout dans cette vie est transitoire. Sages paroles! Mais je voudrais savoir comment être plus détaché dans la pratique. Parce que certaines habitudes semblent inévitables, du moins pour moi: prendre des photos, acheter des souvenirs, écrire dans le journal, pleurer... Manie stupide de vouloir conserver ce que nous ne pourrions jamais posséder et perpétuer ce qui est nécessairement passager!

Du point de vue de la raison, je pense que nous ne devrions pas souffrir autant. Parce que, même avant d'arriver ici, nous savons la date exacte de la fin du période de stage. Bien compris, il n'y a aucune raison de pleurer. Cependant, je sais que la souffrance n'est pas toujours expliquée par la raison: c'est comme quand on passe par l'expérience de l'amour et on trouve en nous un étrange désir d'arrêter le temps, comme si ainsi on pourrait éviter la mort des sentiments et, d'une certaine façon, maintenir l'être aimé pour toujours.

Comment comprendre le coeur, le sentiment? Comment faire face à ces pulsions étranges que, au nom de l'amour, nous amènent nécessairement à la frustration, à la souffrance? Il me semble que la vie serait plus supportable si l'on avait les réponses... Mais qui pourrait nous assurer que chercher ces réponses n'est pas aussi une autre source de désillusion? Moi, je ne peux pas condamner ceux qui semblent avoir perdu la raison en refusant l'inévitable. En particulier, je suis sympathique à tous ceux qui nient la fin du temps de l'amour. Parce que, en étant honnête avec moi-même, je sais que si j'aimerais, je souhaiterais également que l'amour fût éternel.

J'ai trouvé un texte - presque un poème - qui décrit très bien ce que je sens en voyant mes collègues qui partent. C'est un petit morceau de l'une des chroniques que Cecilia Meireles a écrit sur les voyages qu'elle a fait à Buenos Aires et Montevideo en 1944. L'idée est un peu paradoxale, mais totalement vraie: pour continuer à aimer, il faut établir une certaine distance par rapport à ce qu'on aime. Loin d'être facile, il semble plus une question de survivance. Je pense que c'est exactement ce que je sentirai à mon départ de Paris.

"Je veux vous dire adieu mais je ne peux pas, Montevideo. Même le regard de vos chevaux m'attache à vous. Mais si je reste, je ne les verrai jamais peut-être, parce que le métier de l'homme est triste et facilement se vicie. Les yeux ne voient pas ce qu'ils voient toujours et le coeur s'habitue - et il l'oublie... - ce qui est constamment merveilleux. Donc, pour vous aimer, il faut que je vous quitte". (Cecília Meireles, Crônicas de viagem, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 147)

"... é melhor que te deixe"

Este post eu queria escrever só no final de meu estágio em Paris. Mas como onde moro há sempre alguém voltando para o Brasil, fica difícil não pensar nesse momento dramático (e o adjetivo é esse mesmo) que é a despedida.

Não que voltar para o Brasil seja ruim: se fosse, o clima de saudade da terrinha não seria assim tão forte aqui entre os colegas da Maison du Brésil. O problema são os dois desejos contrários que lutam dentro da gente: tudo se passa como se, bem na hora da tão esperada partida, quiséssemos ficar só mais um pouquinho... É como se disséssemos: quero ir agora, mas ainda não (alguém se lembrou de Santo Agostinho?).

Imagino que muita coisa passe pela cabeça das pessoas entre a arrumação das malas e o embarque no avião. Sobretudo coisas que digam respeito ao que se viveu e ao que não se viveu durante os meses de residência no exterior. Talvez os sentimentos de orgulho e frustração se misturem, deixando-nos meio confusos e impedindo-nos de dizer objetivamente o que realmente desejamos. Mas o fato é que, nessa hora, todos se emocionam, tanto quem vai quanto quem fica.

Como dizia meu amigo zen-budista que foi embora no início de agosto, apegar-se às coisas ou às pessoas causa sofrimento, pois tudo nesta vida é transitório. Sábias palavras! Mas queria saber como ser mais desprendido na prática. Porque alguns hábitos parecem inevitáveis, pelo menos para mim: tiramos fotos, compramos lembranças, escrevemos no diário e choramos... Mania besta essa nossa de tentar reter o que jamais poderíamos possuir e de querer eternizar o que é necessariamente passageiro!

[Racionalmente falando, penso que não deveríamos sofrer tanto. Porque antes mesmo de chegarmos aqui, já sabemos que o período de estágio tem data marcada para terminar. Se pensarmos bem, não há motivo para chorar. No entanto, sei que nem sempre o sofrimento se explica pela razão: é como quando vivemos a experiência do amor e descobrimos em nós o estranho desejo de congelar o tempo, como se assim pudéssemos evitar a morte dos sentimentos e, de alguma forma, prender a pessoa amada para sempre.

Ora, como entender o coração, o sentimento? Como lidar com essas estranhas pulsões que, em nome do amor, nos levam necessariamente à frustração, ao sofrimento? Parece-me que a vida seria mais suportável se tivéssemos as respostas... Mas quem garante que buscar essas respostas não seja também outra fonte de desilusão? Quanto a mim, não consigo condenar aqueles que parecem ter perdido a razão ao negarem o inevitável. Em particular, sou solidário com todos os que negam o fim do tempo do amor. Porque, sendo honesto comigo mesmo, sei que, se eu amasse, também iria desejar que o amor durasse para sempre.]

Encontrei um texto - quase uma poesia - que descreve incrivelmente bem o que sinto vendo meus colegas partirem. É um trechinho de uma das crônicas que Cecília Meireles escreveu sobre as viagens que fez para Buenos Aires e Montevidéu em 1944. A idéia é meio paradoxal, porém, totalmente verdadeira: para continuarmos amando, é preciso estabelecer uma certa distância em relação àquilo que amamos. [Longe de ser fácil, parece mais uma questão de sobrevivência.] Acho que é exatamente assim que vou me sentir quando eu mesmo tiver que deixar Paris.

"Quero dizer-te adeus, e não posso, Montevidéu - pois até o olhar dos teus cavalos me está prendendo a ti. Mas, se eu ficar, talvez nunca mais os veja, porque o ofício humano é triste, e facilmente se vicia: os olhos deixam de ver o que estão vendo sempre, e o coração se acostuma - e esquece-o... - aquilo que se faz maravilha constante... Assim, para te amar, é melhor que te deixe." (Cecília Meireles, Crônicas de viagem, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 147)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Pensei no frio

A chuva que caiu durante toda a tarde de domingo parecia anunciar a chegada do frio na França. Não que eu não tivesse notado os sinais cada vez mais fortes nas últimas semanas: as folhas amarelas das árvores, os casacos elegantes das mulheres, o céu escuro já às oito da noite... Mas é que essa chuva de domingo foi diferente, pois ela me fez perceber mudanças que não estavam apenas na paisagem e que eram mais incômodas que a simples queda da temperatura.

Não tive vontade de sair. Poderia sair se quisesse, claro: era apenas uma chuvinha, um friozinho, e ali fora havia nada menos que Paris me esperando... Mas o clima ruim não passava de uma desculpa para ficar na Maison du Brésil, assim como mil outras desculpas que eu também poderia inventar: meus amigos não querem sair hoje, terei muitos outros domingos para passear, quero ler o Cortázar que comprei esta semana, etc.

Lá pelas seis da tarde, estava na cozinha do quarto andar preparando um café com minha amiga para espantar o frio. Olhava o cenário molhado da Cité Universitaire através da janela e, enquanto isso, pensava: que triste esse domingo em Paris! Porque o inverno ainda não chegou (aliás, o outono começou há menos de uma semana!) e já vejo as pessoas perderem a coragem de andar na rua... Eu mesmo, aqui dentro desse prédio, todo encolhido, sinto-me totalmente sem ânimo para sair de casa.

Ora, ora... Eu disse "casa".

Foi só hoje à tarde que percebi a mudança implicada nessa palavrinha: estava me referindo à Maison du Brésil como "casa". Por isso resolvi escrever este post. Dentro de mim, algo aconteceu a ponto de operar não somente uma tradução do nome do lugar, mas, mais do que isso, uma mudança afetiva em relação a este espaço físico que, desde julho, só consigo enxergar como uma espécie de hotel. Não se trata de uma questão de conforto (que tenho), mas de sentir-me "em casa": e como eu poderia me sentir em casa num quarto de hotel? O fato é que, de repente (apesar de saber que nada aconteceu de repente), era como se esta Maison - ou melhor, esta Casa - tivesse deixado de ser um prédio frio e se transformado num lugar de refúgio para mim: refúgio de um mundo gelado e úmido.

Creio na volta do verão: já vi esse milagre acontecer várias vezes e acho que posso ter esperança nisso (pelo menos nisso!). Ainda bem, porque o clima frio faz a gente pensar em coisas esquisitas como essas que escrevi aqui, muito embora eu tenha achado interessante essa experiência de pensar "friamente". De todo modo, lamento que minha casa, minha casa de verdade, eu ainda não saiba onde encontrar. Mas, enquanto não há nada a fazer a não ser esperar os meses de inverno passarem, fico mais tranqüilo por saber que, de alguma maneira e num certo sentido, estou protegido contra o mau tempo de Paris.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Negro como o esquecimento

Le chat noir dans l'affiche du cabaret "Le Chat Noir" de Montmartre est devenu un symbole de la bohème française au fin du XIXe siècle. Le Chat Noir: la représentation de la Belle Époque parisienne qui, dans mon esprit, était animé par des artistes et des intellectuels qu'aimaient boire aux cabarets et y regarder les danseurs du can-can.

Cependant, pour moi, l'image du chat noir que je trouve imprimée sur des cartes postales, tasses, horloges, dessous-de-bouteille et aimants pour réfrigérateur dans les boutiques de souvenirs que je vois, elle a une signification plus particulière que cela de l'histoire de Paris. Tout d'abord, il s'agit du souvenir des choses qui le temps traîne aux ténèbres de l'oubli.

Le Chat Noir: la représentation d'un chat qui n'existe plus, sauf en tant que symbole du processus même qui le fait disparaître. Gato Negro, de la couleur du temps qui passe et qu'on ne retrouve jamais. Negro, comme le moment qui échappe à la lumière du présent et qui, peu à peu, cessera d'exister pour toujours, même dans notre mémoire. Il n'est pas un hasard que le fond de l'affiche est en jaune lumineux: le chat noir dans le noir ne pourrait point être rappelé.

Je sais que cette idée est compliquée, un peu obscure... Mais elle est venue exactement comme ça et j'ai senti que je ne devrait pas l'embellir. Tout a commencé parce que je voulais écrire que, à Paris - la "Ville Lumière" -, je manque des chats.

Les chats ici, je ne les vois pas dans les rues. C'est comme s'ils n'existaient pas. C'est pour quoi j'ai été tellement touché le jour où j'ai entendu un miaulement dans le métro et j'ai vu une petit créature à fourrure dans l'intérieur d'une cage de voyage. Il était si caché que s'il ne miasse pas, je n'aurait jamais lui remarqué. Il me semble que les propriétaires de chats à Paris faire de leur mieux pour rendre ces animaux invisibles dans les lieux publics (c'est n'est pas la même chose pour les chiens!).

Quelqu'un m'a dit que les parisiens aiment les chats. Mais où sont-ils? J'imagine qu'il y a beaucoup de chats, cependant, qu'ils vivent tous cachés derrière les façades charmantes qui je vois dans les rues de Paris. C'est dommage que je ne peux pas les voir de mes propres yeux. Un jour, j'avais un grand désir de voir les chats, alors j'ai entré dans quelques animaleries près de la Notre-Dame: j'ai trouvé un petit chat persan de visage dédaigneux (est-il comme ça, un persan-français?) et je suis tombé amoureux. Mais comme il était cher: 900 euros!

Je voudrais avoir un chat à Paris. Je manque la compagnie féline. Je me souviens toujours Théo, le persan qui a changé mon opinion sur des chats. Il n'était pas un chat noir, mais récupérer Théo en tant que représentation de la mémoire me fait aussi penser aux souvenirs qui s'obscurcissent au fil du temps.

Théo est venu au monde avec la double mission de mettre fin à mes préjugés concernant les animaux et sauver un mariage. Aujourd'hui, j'aime les chats, mais à l'égard du mariage, les choses étaient très complexes et il ne serait pas juste qu'il prît une responsabilité si absurde que cela. C'est pourquoi je suis si triste et si coupable qu'il a choisi partir quand il a vu qu'il ne pouvait pas répondre à tous leurs objectifs de vie. Je ne sais pas ce que Théo connaissait sur les plantes toxiques pour des chats, mais je pense qui ce n'était pas un hasard qu'il a mangé exactement le lys dont aurait symbolisé la paix de leurs parents.

Pour moi, Paris est un endroit où les chats ne sont présents que dans les représentations, dans la reconstruction que fait la mémoire d'une époque qui tend à être définitivement perdu dans les ténèbres de l'oubli, na escuridão do esquecimento. Le manque de chats que je sens dans la Ville Lumière (Ville de la Mémoire, donc) est aussi le manque d'un moment où le temps même prendre soin de glisser aux domaines du Chat Noir de Montmartre. Et pendant que j'ai encore un peu de clarté dans mes souvenirs, je regarde les images de mon chat à l'ordinateur avec une grande nostalgie.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Noir comme l'oubli

O gato negro no cartaz do cabaré Le Chat Noir em Montmartre tornou-se símbolo da boemia francesa do final do século XIX. Le Chat Noir: representação da belle époque parisiense que, em meu imaginário, era animada por artistas e intelectuais que se divertiam nos cabarés bebendo e assistindo a dançarinas de can-can.

Todavia, para mim, a imagem do gato negro que vejo estampada em cartões, canecas, relógios, porta-copos e ímãs de geladeira nas lojinhas de souvenirs por onde passo tem um significado mais particular que esse da história de Paris. Ela diz respeito, antes de tudo, à lembrança das coisas que o tempo arrasta para a escuridão do esquecimento.

Toulouse-Lautrec
Le Chat Noir: representação de um gato que já não existe mais, a não ser enquanto símbolo do próprio processo que o faz desaparecer. Gato Negro, da cor do tempo que passa e não volta. Noir [pronuncia-se nô-ar], como o momento que foge da luz do presente e, aos poucos, vai deixando de existir para sempre, até mesmo em nossa memória. Não é por acaso que o fundo do cartaz seja de um amarelo luminoso: o gato negro no escuro não poderia ser lembrado.

Sei que essa idéia é complicada, meio obscura... Mas ela apareceu assim mesmo e senti que não deveria enfeitá-la. Tudo começou porque eu queria escrever que, em Paris - a "Cidade Luz" -, sinto falta de gatos.

Gatos aqui, não os vejo nas ruas. É como se não existissem. Por isso fiquei tão emocionado um dia desses quando escutei um miado no metrô e vi um serzinho peludo dentro de uma mala-gaiola. Estava tão escondido que, se não miasse, eu jamais o notaria. Parece que os donos dos gatos em Paris fazem o possível para que os bichanos sejam invisíveis nos lugares públicos.

Ouvi dizer que os parisienses adoram gatos. Mas onde eles estão? Imagino que existam muitos, porém, que vivam todos escondidos por trás das charmosas fachadas que vejo nas ruas desse lugar. Pena eu não poder vê-los com meus próprios olhos. Outro dia estava com tanta vontade de ver gatos que entrei em alguns pet-shops próximos à Notre-Dame: até encontrei um filhote de persa com cara de enjoadinho (será assim um persa-francês?) e me apaixonei. E como era caro: 900 euros!

Queria ter um gato aqui em Paris. Sinto falta da companhia felina. Lembro-me sempre de Theo, o persa que mudou minha opinião sobre gatos. Não era um chat noir, mas recuperá-lo como representação da memória também me faz pensar nos souvenirs que obscurecem à medida que o tempo passa.

Theo veio ao mundo com a dupla-missão de acabar com meus preconceitos em relação a animais domésticos e salvar um casamento. Hoje amo gatos, mas, quanto ao casamento, as coisas eram muito complexas e não seria justo que Theo assumisse uma responsabilidade absurda como essa. Por isso fico tão triste e culpado por ele ter escolhido partir quando viu que não conseguiria cumprir todos os seus objetivos de vida. Não sei o quanto Theo conhecia sobre plantas venenosas para gatos, mas não acho que tenha sido por acaso que ele comeu justamente o lírio que deveria ter simbolizado a paz de seus pais.

Paris é, para mim, um lugar onde os gatos estão presentes apenas nas representações, nas reconstruções que a memória faz de um tempo que tende a se perder definitivamente nas sombras do esquecimento, dans le noir de l'oubli. A falta que sinto de gatos na Cidade Luz (Cidade da Memória, portanto) é também a falta que sinto de um momento que o próprio tempo cuidará de arrastar para os domínios do Chat Noir de Montmartre. E, enquanto ainda tenho alguma clareza nas lembranças, fico olhando no computador as fotos de meu gato com muita saudade.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Provincianismo parisiense

Apesar de ser visitada por gente do mundo inteiro, Paris tem um comércio local que confere à cidade um certo ar provinciano. Logo que cheguei, não pude deixar de estranhar o fato de alguns estabelecimentos - dentre os quais bancos - fecharem as portas no horário de almoço.

Outros padrões do comércio também chamaram minha atenção: alguns mercados encerram o expediente antes das 20h, muitos não funcionam aos domingos e, para meu espanto total, durante o período das férias de verão, em agosto, vários comerciantes viajam e só reabrem suas lojas em setembro.

Num domingo à tarde, por exemplo, achar uma padaria aberta em Paris nem sempre é tão fácil como em São Paulo. Essa constatação me remeteu às memórias de outros tempos. Lembro-me de quando os comerciantes de São Carlos, cidade no interior de São Paulo onde cresci, discutiam se as lojas deveriam abrir aos domingos com a chegada do primeiro shopping center em 1997.

Mas algo que me incomoda bastante em Paris (e isso não é apenas um estranhamento, mas também um preconceito meu em relação aos franceses) é a maneira como os clientes são tratados em determinadas situações: em vez de simplesmente realizarem os serviços a que se prestam, certos atendentes parecem ter uma vontade irresistível de estabelecer algum tipo de conversa inteligente com a pessoa atendida.

Bom, até aí, nada de mais: afinal, conversar de maneira inteligente é uma coisa que os civilizados gostam muito de fazer. Eles não conseguem ficar calados, sobretudo quando pensam estar diante de um civilizado como eles, e isso exige de mim uma boa dose de paciência... Mas o problema é que alguns civilizados são mais importunos e, talvez involuntariamente, acabam invadindo a privacidade alheia de uma maneira às vezes até meio agressiva.

Por exemplo, quando fui comprar a passagem para Amsterdam, o senhor da agência de viagem, não contente em apenas checar meu formulário e receber o dinheiro, resolveu estabelecer um diálogo comigo: começou perguntando sobre a origem de meu sobrenome e, depois de estranhar o fato de eu vir do Brasil e não do Japão, quis saber, muito abelhudamente, o que eu estava fazendo em Paris, o que eu estudava, quanto tempo iria morar aqui, etc., etc., etc.

Confesso que me senti bastante aborrecido, porque aquele não me parecia o local apropriado para tal interrogatório, desnecessário e invasivo.

Esse tipo de situação me leva a pensar que o provincianismo de Paris não se resume aos horários do comércio, mas aparece também nos próprios costumes dos comerciantes. Resgatando as memórias dos tempos de São Carlos (de novo), lembro-me dos lojistas locais, que sabiam da vida pessoal dos moradores da cidade e que, por isso mesmo, poderiam receber justamente os seguintes adjetivos: xeretas, intrometidos e palpiteiros.

Em Paris, passei por aborrecimentos causados por comerciantes que me lembravam esses de minha infância provinciana. Felizmente foram poucos e nenhum deles me tirou do sério. No entanto, ontem passei por uma experiência notável num mercado próximo à Cité e que achei que deveria registrar para me curar do rancor.

Fui comprar uma baguette para a janta e, como sempre faço, pedi "celui-là", apontando para a que eu queria. Aí, o francês que me atendeu resolveu me civilizar: começou a me ensinar que aquilo se chamava "pain" (que, no fundo, não passa de outro tipo de baguette) e, pelo tom professoral, fez com que eu me sentisse em plena sala de aula!

Mas o detalhe é que ele queria que eu repetisse a palavra com a pronúncia correta, como se estivéssemos em uma aula de francês e eu fosse um aluno retardado: "pain", "pain", "pain". Para avacalhar de vez com a situação, ele ainda me perguntou se eu era chinês. E isso foi a gota d’água para mim! Ora, quanta estupidez a daquele francezinho idiota não saber a diferença entre um chinês e um japonês, que é tão óbvia quanto a diferença entre uma baguette e um pain!!!


Quando me dei conta do ridículo daquela situação, juro que fiquei com vontade de pegar a faca com a qual aquele fils de pute cortava o pain e dizer: "Excusez-moi, Monsieur, mais je voudrais couper votre gorge, s’il vous plaît..." [Com licença, Senhor, mas gostaria de cortar sua garganta, por favor...]. Felizmente, contive-me, porque estava cercado de civilizados por todos os lados. Na verdade, ponderei que matar alguém assim em público poderia não só me trazer algumas complicações no convívio com os civilizados, como talvez até mesmo atrapalhar o trabalho normal de minha pesquisa aqui na França.

Então, dissimulei (atitude típica nas relações sociais entre civilizados) fazendo um comentário geral da situação, bem do jeito como esses franceses ridículos gostam: "Ah, la baguette et le pain sont différents, hã?!" [Ah, a baguete e o pão são diferentes, né?]. O rapaz, com um ar de superioridade e cara de nojo, deu um daqueles sorrisos que só um francês ridículo como ele sabe dar, e respondeu balançando a cabeça como um cachorro balança o rabo, dizendo: "Oui".

Para não prolongar minha tortura, paguei rapidamente e me despedi: "Merci, au revoir..." Minha reação mais selvagem foi ter saído sem ouvir a resposta dele, porque naquela hora eu não suportaria ouvir mais nenhuma palavra em francês! Não que eu sempre seja assim tão sensível. Em geral, não dou a mínima para esse tipo de humilhação. Mas o fato é que justamente ontem eu não estava bem, sentia-me triste, com saudades dos cheiros das padarias do Brasil, e a última coisa que eu precisava era de mais civilização, coisa que aquele francês nojento achou que estava fazendo o favor de me dar!

Depois desse episódio, lembrei-me de um vídeo que circulou aqui entre os colegas da Maison du Brésil e que foi apreciado por vários (não vou dizer quem gostou e quem não gostou para não comprometer os brasileiros que aspiram ser civilizados). A filmagem deu-se durante um festival de jazz em Montreaux, na Suíça, com a participação de Tom Zé, que resolveu dar um espetáculo à parte pelo fato de ter se sentido humilhado enquanto estrangeiro pelos organizadores do evento.

Preciso confessar que, da primeira vez que assisti a esse vídeo, eu mesmo não gostei. Pois a reação do músico brasileiro parecia-me pura afetação, atestado de ignorância, ressentimento ou mesmo preconceito invertido. Mas hoje, pensando melhor, vejo-o com bons olhos: parece-me muito mais uma maneira - exagerada ou peculiar, pouco importa - de chamar a atenção daqueles que, de tanto humilharem os estrangeiros, já nem percebem mais que fazem isso e, como diz o Tom, passam a agir "vilmente".



Se eu fosse o Tom Zé, poderia dizer para aquele francês ridículo do mercado: "Vá pra porra!" Mas como sou apenas Tom (Jacque, que me abrasileirou, me chamava assim) e não tenho Zé no nome, falta-me um pouco de dignidade de pobre, de sangue quente dos barraqueiros, e, talvez por essa carência, eu acrescentaria uma fórmula de politesse na expressão de meus sentimentos para aquele fils de pute não estranhar tanto: "Vá pra porra, s’il vous plaît". Não seria tão agressivo, mas pelo menos eu não sairia daquele mercado com tanta indignação.

domingo, 12 de setembro de 2010

Dois meses

Hoje, dia 12, faz dois meses que cheguei a Paris. E agora, ao lembrar-me das primeiríssimas impressões que tive ao ver a cidade, acho interessante a frase que escrevi: "tudo muito grandioso, tudo luxuoso, tudo assustador..."

Já falei algo sobre as coisas grandiosas e luxosas. Mas sobre as assustadoras não.

Tudo em Paris é "assustador". Queria entender por que eu disse isso, pois a palavra é muito significativa. Tenho falado sobre meus medos no blog: o post sobre o sentimento de estrangeiro e o das descontinuidades mostram isso claramente.

Não é medo do monstro escondido embaixo da cama, nem medo de ser pego pela mãe fazendo coisas erradas. Não é medo de ladrão, nem de fantasma. Não é medo de viajar, não é medo de ficar doente. Tampouco é medo de morrer.

Medo de quê, afinal? Não sei. Só sei que o medo está presente na minha cabeça. Porque, se não estivesse, ele não apareceria tanto. Ah, como sinto falta de meu analista! Mas ele me disse, antes da viagem, que a análise viria comigo. E levei isso a sério. Tanto assim, que pensei no seguinte diálogo fictício entre nós:

Analista: Em Paris, o que assusta você?

Eu: Tudo.

Analista: Mas o que é "tudo"?

Eu: Não sei... Tudo é... tudo!

Analista: Como assim? Dê um exemplo de algo que assusta você.

Eu: Hummmm... Bem, acho que... a luz.

Analista: A luz?

Eu: Sim, a luz. Estou na chamada "Cidade Luz". A luz está por todo lugar e me faz ver que não estou no Brasil. Havendo luz, vejo que tudo ao meu redor é estranho. É a luz que faz com que eu olhe para mim mesmo e me veja como um estrangeiro. Acho que é a luz que me assusta.

Analista: E você gostaria de não ver nada? Gostaria de ficar sem luz?

Eu: Talvez eu sentisse menos medo na escuridão.

Analista: E quanto à escuridão? Se você estivesse sem luz, a escuridão também estaria em todo lugar. A escuridão não assusta você?

Eu: Não. Na escuridão eu não teria medo. Poderia até imaginar que estivesse em outro lugar, um lugar conhecido onde eu me sentisse seguro. Poderia fechar os olhos e me imaginar no Brasil. Mas em Paris, na Cidade Luz, a luz não permite isso. Olho para todas as direções e sinto o medo, mesmo que seja latente, medo potencial, sabe? Tenho vontade de fechar os olhos...

Analista: Fechar os olhos faz você sentir menos medo?

Eu: Puxa vida, não tinha pensado nisso! E veja que eu até já havia escrito algo a respeito de fechar os olhos*... E fechando os olhos eu poderia também descansar os olhos cansados**, etc.

* * *

Bem, claro que deixei o diálogo mais interessante do que costumavam ser minhas conversas com o Mauro, meu analista. Mas esse foi um diálogo que escrevi como se estivesse numa sessão de análise. De fato, Mauro estava certo: a análise veio comigo. Se bem que um pouco mais fantasiosa...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Descontinuidades

Sinto-me incomodado com as lembranças que não consigo relacionar. Acho que tenho dificuldade para aceitar que os objetos de minha memória podem não estar necessariamente ligados entre si. Pedaços de passado que não se encaixam: deve ser isso que me desagrada.

Quando olho para trás, vejo coisas amarradas que, no entanto, não combinam. Uma seqüência gravada de impressões descontínuas. Recordações que, apesar de estarem numa certa ordem, parecem estranhas entre si. Como é possível tanta disparidade junta? Não sei. Mas talvez minhas lembranças sejam assim apenas e tão-somente porque cada souvenir aponta para uma situação que eu vivi, ainda que cada situação pudesse representar, isoladamente, a vida inteira de um outro que não eu.

O que a engenharia tem a ver com a filosofia? Possivelmente, apenas o percurso que realizei para passar de uma à outra. Mas, de modo geral, duas áreas distintas, duas vidas sem conexão. Numa, leio livros de elementos de máquinas, termodinâmica e mecânica dos fluidos. Noutra, leio a República de Platão, as Confissões de Agostinho, as Meditações metafísicas de Descartes... E o que uma vida tem a ver com a outra? Talvez nada. Ou quem sabe, apenas eu.

No domingo passado, viajei de excursão para Giverny, o vilarejo próximo a Paris onde fica a casa de Monet. Além de algumas telas dentro da casa, vi as flores do jardim, as ninféias no lago, a ponte japonesa. Lugar lindo.

 
 
Contudo, na mesma excursão, passamos depois por Auvers-sur-Oise, e ali visitei a casa onde Van Gogh morreu: o quarto, preservado como na época do suicídio do pintor, parecia-me insuportavelmente fúnebre, triste e sombrio. Lugar feio e deprimente. Cheguei a me sentir mal ali. Duas cidades, duas impressões distintas. E o que Giverny tem a ver com Auvers? Talvez nada. Ou quem sabe, apenas eu.

Penso que o incômodo de lidar com lembranças incoerentes tenha origem num medo. Medo de não me encontrar inteiro em minha história, de não saber remontar a mim mesmo após retirar da gaveta bagunçada da memória as impressões diversas de meu passado. Seria como tentar resolver um quebra-cabeça e, só após muito esforço, descobrir que as peças não formam uma imagem clara e coerente, seja porque algumas delas faltam, seja porque outras não pertencem àquele jogo em particular.

Memória: um amontoado de peças que não têm ligação necessária entre si, ou que talvez estejam ligadas apenas pelo fato de serem peças do jogo de uma mesma pessoa. Para mim, um jogo assustador, porque a cada movimento tenho medo de descobrir que a tão desejada cadeia invisível responsável por amarrar as coisas soltas de meu universo na verdade não existe. Ou, pior ainda, medo de descobrir que, em última instância, a única cadeia de minha história sou eu mesmo.

Andei pensando na tela "Campo de trigo com corvos", do Van Gogh. Quando a vejo, sinto-me absurdamente incomodado (na verdade, nem sei por que comprei o afiche dela para pendurar em meu quarto). Mas, mesmo assim, ela me fascina. Há na imagem elementos bastante perturbadores: o céu escuro e ameaçador, os corvos que anunciam maus presságios, os três caminhos que parecem representar a indecisão diante da necessidade de uma difícil escolha.


Mas o que mais chama minha atenção na tela é o caminho do meio. É esse caminho que corta o campo em dois, que divide o que deveria ser contínuo. Caminho estranho - pois parece não levar a lugar nenhum -, que serve apenas para romper a unidade da impressão que teríamos do campo original. Pensando assim, sinto como se os corvos anunciassem a morte ali no meio do trigo, porque o campo mesmo foi dilacerado, a integridade de um corpo vivo foi destruída. Mais especificamente, a impressão que tenho dos lados separados se confunde com a descontinuidade que experimento em minhas próprias lembranças. Lados separados por um caminho lúgubre que, de certa forma, é indissociável de meu próprio percurso de vida.


sábado, 4 de setembro de 2010

Ver e rever (de novo)

A cada vez que vejo a torre, ela me parece um pouco diferente. À medida que meus olhos se acostumam com sua imagem, ela vai perdendo o encanto e se tornando mais e mais real.

É como se, pela força do hábito, o aspecto de sonho fosse desaparecendo da minha visão e, no final, só sobrasse a parte real: não mais rê-ver, mas apenas ver (lembram-se de ver e rêver?).

Será possível desencantar-se com Paris? Será possível uma Paris real? Talvez. Por que não? Afinal, o hábito cansa nossos olhos - mesmo que seja cansaço de deslumbramento -, e olhos cansados são desencantados, pois só enxergam o que é real.

É por isso que fico tão emocionado ao conhecer casais de longa data: apesar do hábito, há ainda algum tipo de encanto. Não o encanto da primeira vez, da paixão nova, mas um outro encanto: o da realidade reencantada. Mas esse (re)encanto, será real? Dúvidas, dúvidas...

Só sei que admiro muito os casamentos duradouros, pois eles me fazem crer que hábito e encanto não são tão incompatíveis quanto parecem à primeira vista. Mesmo porque, à primeira vista, não vemos a realidade, apenas sonhamos.

Queria então me habituar a ver casais antigos, até que eles me parecessem bem reais. Porque acho que assim eu descobriria como reencantar o real, como descansar os olhos cansados, para ver e rêver o mesmo como se fosse novo de novo e de novo...

Ah, como eu queria amar (Paris) de novo... e sempre!