terça-feira, 26 de outubro de 2010

Longe demais

Tento entender o porquê da falta de vontade para escrever sobre o primeiro encontro pessoal que tive, no dia 16, com meu orientador da Sorbonne. Afinal, foi um fato muito importante no contexto de minha vinda a Paris, e, por isso mesmo, penso que as impressões acerca desse momento mereceriam ser registradas.

No entanto, sempre que eu tentava começar algo, a vontade de escrever desaparecia. Tentei várias vezes, mas não consegui. Fiquei espantado comigo mesmo porque eu já havia escrito sobre tantos assuntos banais... Mas sobre esse assunto, justamente esse, a mágica da escrita simplesmente não acontecia: escrevi até sobre outra coisa (no post Mar Absoluto), mas sobre o encontro, nada, nadinha, rien de rien.

A única resposta que consegui elaborar surgiu a partir da leitura de uma carta que Freud escreveu a seu amigo Romain Rolland, na qual relata o sentimento de "estranha irrealidade" que teve ao visitar a Acrópole de Atenas pela primeira vez aos 48 anos. A reação de Freud foi perguntar a si mesmo se a Acrópole que via era real, se tudo aquilo existia verdadeiramente, como havia aprendido na escola. E, na carta, descreve o estranhamento em relação a sua própria atitude de incredulidade diante de um fato que, a princípio, deveria lhe proporcionar imenso prazer.

Freud explica tratar-se de um fenômeno psíquico de ilusão da memória: quando jovem, ele via Acrópole apenas como um distante objeto do desejo e, por isso mesmo, havia duvidado de sua existência; contudo, ao deparar-se com a Acrópole na idade adulta, teve a memória deslocada para esse tempo de descrença e, por um instante, sentiu que "Isso que vejo não é real". Ou seja, uma falha de memória que funcionava como uma espécie de mecanismo de negação da realidade.

Na carta, Freud acrescenta ainda que tal mecanismo tem relação com um sentimento de culpa: culpa de ter ido longe demais, para além do que seu pai (que era um simples comerciante e para quem Acrópole não significava grande coisa) lhe permitiria ir: "Tudo se apresenta como se o essencial, no sucesso, fosse levar as coisas mais longe do que seu pai, e como se não fosse permitido querer ultrapassá-lo." Daí a razão não apenas do sentimento de irrealidade, mas também de um pessimismo castrador expresso em pensamentos como "bom demais para ser verdade" e "não sou digno de tal felicidade, não a mereço".

Eu já conhecia essa carta. Porém, foi somente aqui, em Paris, que o que Freud escreveu fez sentido para mim. Porque Paris me faz sentir essa "estranha irrealidade". Encontrei o texto mais ou menos por acaso, em minhas leituras fora da tese (que podem acabar me levando longe demais) sobre problemas ligados à memória, que me interessam muito desde que cheguei a este lugar. E eis que, novamente, deparo-me com a questão do sentimento de culpa. Culpa de estar em Paris, de ter ido longe demais. Ou, pelo menos, mais longe do que me seria permitido ir.

Como se o que tivesse acontecido naquele dia 16 de outubro de 2010 fosse proibido... Daí a razão de não escrever sobre o fato. Como se minha própria memória (a escrita) se recusasse, num movimento de castração, a admitir a realidade de certas coisas... Será?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Mar absoluto


Ontem senti que eu talvez não quisesse estar aqui. Porque, de certa maneira, Paris é como a sala do analista naqueles dias em que faltava-me coragem para falar de certos assuntos. Pois é... Morando neste lugar de sonho, sou levado a pensar em questões que jamais passariam por minha cabeça e que jamais me afligiriam se eu estivesse em condições normais no Brasil.

Posso dizer que, no Brasil, eu fugia de mim mesmo buscando ocupar-me com aquilo que pensava poder chamar de realidade: não uma fuga da realidade, mas uma fuga para a realidade. Como se os problemas práticos da vida, em geral ligados a dinheiro e a carreira no meu caso, pudessem ocupar mais espaço em minha lista de prioridades do que as questões existenciais, que eu relegava ao mundo da ficção, compreendido pelo cinema, pela literatura e pela filosofia. Antes de tudo, era preciso ser forte, como diziam as vozes dos antepassados:

"Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!
"

Mas em Paris, onde ficção e realidade se confundem o tempo todo, vejo cair por terra minha antiga forma de ordenar a vida. Porque os problemas práticos revelam-se para mim absolutamente fictícios, coisas de existência evanescente, vindas de um lugar distante perdido no reino da imaginação, como se dinheiro e carreira é que representassem, de fato, uma fuga da realidade de meu cotidiano francês. Um cotidiano que, sem que eu precise me esforçar muito, me leva a pensar em questões pessoais bastante delicadas - como o amor, a solidão, o sentido da vida -, as quais, estranhamente, adquirem uma concretude inédita, muito pesada para meus sentimentos despreparados; questões que acho difíceis de serem lidadas com meu pretensioso, porém ingênuo, racionalismo de engenheiro.

Em Paris, não tenho para onde fugir. Não posso fugir da realidade, pois ela me cerca por todos os lados, como num sonho. Tampouco posso fugir para a realidade, porque o que antes eu chamava de ficção, agora assola meu corpo materialmente, como se o próprio real da vida que dói na pele se reduzisse aos dramas de romance e às discussões dos filósofos (inclusive política, que eu sempre havia visto como fábula). Não posso nem mais dizer: isto é real, isto é ficção, porque a realidade mesma já não se opõe ao fictício, ela é frágil e fugaz, como uma promessa, um desejo ou uma história inventada. Uma simples mudança de opinião ou um instante de desequilíbrio emocional pode fazer todo o real se desmanchar, como um discurso que se contradiz, como um castelo de cartas que cai com a mais leve das brisas.

Neste domingo, tentei fugir do real indo ao Musée d'Orsay, mas não deu muito certo: ali também havia muita realidade. Mas, ao mesmo tempo, era tudo tão irreal... Que confusão! De todo modo, o mais notável foi que ninguém tenha me influenciado na decisão de ir àquele museu. Fui eu mesmo que escolhi. Planejei tudo durante a semana e juro que desejei realmente esse passeio. Mas quando entrei e comecei a olhar as obras - as telas de Courbet e de Gauguin, as esculturas de Carpeaux, e toda aquela arte produzida por outros tantos nomes que simplesmente não faziam sentido real para mim -, era como se eu não quisesse estar ali. Logo me aborreci. Queria fugir. Mas não podia mais, porque eu sabia que, independentemente de onde eu fosse, não poderia escapar de mim mesmo e, por conseguinte, de toda a realidade que, por alguns instantes, eu gostaria de esquecer.

Deve ser por isso que fiquei me lembrando do poema "Mar Absoluto", da Cecília Meireles. Porque nele, Cecília fala de uma fuga para além da realidade ilusória da terra firme ou dos pescadores mortos que pedem rezas: é a busca de um outro mar, muito difícil de se encontrar porque só aparece mediante uma revelação interior, quando, após converter-se a si mesmo ("estudo a solidão"), o eu do poema consegue coragem para querer conhecer esse mar diferente, que, para mim, simboliza o encontro real da poetisa consigo mesma. Um mar com "face espantosa", onde tudo é "sobre-humano", e que, com um profundo senso de realidade (afinal, a realidade não é assim, espantosa, sobre-humana?), Cecília chama de Mar Absoluto. Li esse poema centenas de vezes, e, a cada leitura, um trecho em particular me toca. Desta vez, foi a parte final, que é justamente o momento da conversão do eu e da revelação do Mar Absoluto.

E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Três meses

Parque Montsouris
Mais um dia 12. Confesso que está passando mais rápido do que eu esperava. Que bom... Ou melhor, pas mal, como se diz por aqui.

Hoje começou a greve dos trabalhadores contra a reforma da previdência na França. Sabendo que o transporte público estaria parcialmente paralisado e que haveria muitos protestos nas ruas (as "manifs"), decidi trabalhar em casa mesmo. Estranho estar perto desse fato internacional, que agora é nacional para mim. Enquanto isso, no Brasil, Dilma e Serra disputam o segundo turno da eleição para presidente, que acompanho de longe e com uma certa aflição.

Mas, enfim, estou aqui, trabalhando no doutorado em condições excepcionais, como jamais teria no distante Brasil.

Depois de sofrer o dia inteiro tendo que ler um texto chatérrimo para a tese (Lettres écrites de la campagne, de Jean-Robert Tronchin), saí no final da tarde para correr pelo parque Montsouris, que fica bem em frente à Cité Universitaire. É um lugar muito especial para mim. Não apenas pela paisagem lindíssima, que inclui uma pequena cachoeira e um bucólico lago com patos, mas também por ter sido ali que, pela primeira vez, percebi ser possível algum tipo de sociabilidade com os parisienses. Explico.

Logo após aterrisar em Paris, sentia-me zonzo devido ao cansaço da viagem e à diferença de fuso. Cheguei a passar mal no primeiro dia, de tão atordoado que estava com o choque da mudança. E não foi só o corpo que estranhou: lembro-me da confusão mental que sofri por achar tudo ao meu redor estranho e assustador. Decidi então correr, já que era isso que eu fazia desde a separação para não me deprimir. E deu certo: o mal-estar foi diminuindo à medida que eu corria e via outras pessoas que também corriam. No final, não sei o que me ajudou mais: a atividade física ou a interação social.

Os outros corredores pareciam próximos. Era como se fossem brasileiros só pelo fato de estarem correndo. Esquisito, eu sei, mas não consigo explicar melhor. Era uma ação comum, ou talvez, uma linguagem comum - a corporal - que, a despeito das diferenças de língua e civilização, tornava as pessoas estranhas menos estranhas. Talvez pensassem o mesmo de mim... Interessante essa identificação pelo corpo, ou melhor, pela linguagem do corpo... (antropólogos, me expliquem!) Isso aconteceu no parque Montsouris. Foi uma transformação importante do ponto de vista psicológico. Por isso acho esse parque tão especial.

O parque Montsouris também ficará em minha memória como um lugar de filme. Pelo seguinte motivo.

Por um feliz acaso, assisti ontem Paris, je t'aime (2006). Queria rever os lugares nos quais as histórias acontecem. Já havia feito isso com Amélie Poulain para rever Montmartre. Mas, no caso de Paris, je t'aime, a experiência foi muito mais forte, mesmo porque quase todos os arrondissements estão no filme. Parecia mágica: aqueles cenários, que antes eram absolutamente indiferentes, haviam se transformado em locais familiares aos meus olhos.

E, de fato, mesmo os pontos mostrados que ainda não conheço poderiam se tornar concretos para mim muito facilmente: bastaria um mapinha na mão e alguma disposição para andar. Os detalhes das ruas e dos prédios, o metrô, as roupas dos personagens, as situações e, até mesmo, o clima meio melancólico, tudo isso havia deixado de ser ficção ou cenografia. Em Paris, sinto-me realmente em um filme francês, como se a realidade mesma fosse cenográfica ou como se eu estivesse na própria projeção em uma cena do Truffaut ou do Resnais. Experiência única, que eu simplesmente não consigo imaginar como poderia viver a não ser do lado de dentro da tela, isto é, na própria Cidade Luz.

Tudo isso para dizer que a última história do filme, a da turista americana que relata sua viagem solitária a Paris, termina no parque Montsouris. E foi naquele lugar encantador - resisto muito a usar a palavra "místico" - que a mulher viveu a experiência interior indescritível, traduzida por ela mais ou menos como um sentimento de déjà vu e uma mistura de alegria e tristeza. Ali, sozinha, longe do trabalho e dos conhecidos, a relação distante e sem vida que a mulher tinha com Paris se transformou em uma relação de amor. E, por causa desse amor, ela se sentia viva. Uma história singela e emocionante, como, aliás, quase todas as histórias do filme. Mas essa, em especial, me emociona mais. Porque, apesar de ser outra história, não deixa de ser a minha história em Paris. Como na música do filme, estamos todos sempre "na mesma história".

A música "La même histoire" (que é linda) pode ser ouvida com a tradução da letra neste site: http://letras.terra.com.br/feist/781533/traducao.html

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Sobre arte

 

Meu interesse pelas artes nunca ultrapassou a mera curiosidade. Em geral, aprecio uma tela ou uma escultura com base no sentimento que me leva a dizer: "ah, que linda!". E quando digo isso, não me refiro a nenhuma categoria da estética nem a qualquer tipo de análise especializada. Pois não se trata do juízo de um profissional das artes, mas apenas e tão-somente de uma expressão de encantamento particular.

Nesses termos, não vejo muita diferença entre olhar para uma tela de Klee ou uma de Mondrian (a discussão colocada por Cortázar no capítulo 9 de Rayuela é, para mim, absolutamente estranha). Na verdade, há artistas anônimos que me fascinam até mais do que os clássicos, ainda que, de acordo com certos padrões (ou dogmas) da história da arte, tenham suas obras consideradas apenas como lixo cultural. Mangás, por exemplo.

Talvez um dia eu seja como alguns de meus amigos, que costumam dizer que amam Monet, Van Gogh, Turner, Picasso etc., não apenas como afirmação de uma preferência subjetiva, mas também objetivamente, justificando seus "gostos" com argumentos baseados em conceitos acerca do "belo" aparentemente bastante razoáveis (lembrei-me das aulas de estética no curso de filosofia, e de como vários de meus colegas adoravam tudo aquilo). Seja como for, por enquanto, isso é civilizado demais para mim, ainda que eu goste de visitar museus.

De todo modo, freqüentar os museus de Paris é algo que considero difícil. Porque a quantidade de obras que se pode contemplar por metro quadrado aqui é enorme, e aquele não-sei-quê-de-beleza-sensível que tornaria uma obra especial na comparação com as outras fica simplesmente pulverizado em meio à multidão de belas obras que vejo concentradas. É como conseguir enxergar uma bela mulher nas ruas de Paris, tão repletas de mulheres que mereceriam muito mais do que um mero "ah, que linda!"...

Neste domingo, fui ao museu Carnavalet, que tematiza a história de Paris. Mesmo sendo um museu menor, havia ali também uma grande concentração de obras de arte (ou seja, nada de novo!). De conhecido, encontrei telas que já havia visto em livros, sobretudo na seção da Revolução Francesa. Vi também os móveis do quarto de Marcel Proust onde - dizia a placa de informação - o escritor havia produzido a maior parte de Em busca do tempo perdido. Lembrei-me de Carla, minha professora de francês - a melhor até hoje! -, que é doutora em Proust nas letras...

No entanto, a obra (se é que posso usar esse termo) que mais me encantou no Carnavalet foi o arranjo dos móveis do quarto de uma escritora da qual eu nunca havia ouvido falar: Anna de Noailles (1876-1933). Havia um retrato dela pendurado na parede que imediatamente me chamou a atenção. Não sei explicar objetivamente por que aquela face me atraiu tanto. Não era uma tela famosa de um artista conhecido. Por isso me perguntei: não deveria ser apenas mais um belo rosto, apenas mais um belo olhar? Talvez eu tenha me interessado pelo fato de ela ter sido uma condessa e seu quarto ser tão simples, tão rústico... Ou talvez - e acho que aí estava o "sinal" - fosse o detalhe de uma senhora ali no museu ter pedido informação sobre um dos livros de Anna para o segurança, que não soube responder (o que foi bastante insólito, pois, pela primeira vez, vi um francês que não sabia tudo).

Quarto de Anna de Noailles, no Musée Carnavalet
Ainda que eu não tivesse razões para achar belo aquilo que se mostrava a mim por meio de meus olhos, tive vontade de dizer: "ah, que linda!"... Mais tarde, fui pesquisar na Internet sobre essa mulher. E descobri algumas passagens tocantes em suas poesias, nas quais ela versa sobre o amor, a natureza e a morte. Em Le coeur innombrable (1901), que foi justamente o livro que interessara a senhora no museu (seria uma intuição estética?!), encontrei um poema sobre o beijo - Le Baiser -, que me colocou em estado de arrebatamento. Aqui, só uma estrofe:

"Les frôlements légers des eaux et de la terre,
Les blés qui vont mûrir,
La douleur et la mort sont moins involontaires
Que le choix du désir.
"

["Os toques leves das águas e da terra,
Os trigos que amadurecerão,
A dor e a morte são menos involuntários
Que a escolha do desejo.
"]

Lendo isso, não consigo não achá-la linda, "ah, que linda!".

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sem comunicação

"L'Écoute": obra de Henri de Miller diante da Igreja de Saint-Eustache em Les Halles

Comecei a escrever algumas coisas no diário referentes à semana anterior. Queria reproduzir no texto a alegria que senti por passar alguns momentos agradáveis com os amigos em Paris. Até me empolguei para fazer isso hoje. Porém, não demorei muito para perceber que, nas poucas linhas que saíram, os nomes e os lugares que mencionei, as situações que descrevi e os próprios termos que utilizei só eram emocionantes e só faziam sentido para mim. Ou, na melhor das hipóteses, para os amigos que estavam comigo.

Alguém poderia dizer: "Mas há quem te entenda!" Sim, claro. Há sempre alguém que nos entende. Ou, pelo menos, que faz parecer que nos entende. Mas a questão não é saber da existência desses seres iluminados e iluminadores (penso no analista), sem os quais - diga-se de passagem - a vida seria terrível: o problema mesmo são as pessoas para quem gostaríamos de falar e que não podem - ou não querem - nos ouvir.

De repente, descobri-me sozinho, de novo. Porque era como se eu falasse para o vazio, sem poder contar com ninguém para ouvir aquilo (ainda que eu soubesse que sempre há), como se aquele sentimento de alegria que existiu fosse absolutamente indiferente, irrelevante mesmo, no isolamento existencial em que eu me encontrava. Exageros à parte (quase um melodrama, credo!), é preciso observar que, nesse meu egocentrismo, vê-se a contraposição do meu eu com um Outro que, assim como eu, também precisa comunicar seus sentimentos.

De fato, o mais terrível dessa descoberta foi perceber que todas as queixas que eu poderia dirigir a essa multidão surda, essa mesma multidão surda poderia dirigir de volta a mim. E eis que me vi, mais uma vez, na posição de "surdo", por incapacidade ou por falta de vontade de ouvir, isso pouco importa: o que eu não podia negar era que, em minha surdez, eu ouvia essa multidão dizer que o que sentiam não significava nada para mim, que eu não os entendia, que eu era surdo para seus corações... Como um eco. Antes fosse surdo (ou egocêntrico) de verdade para não ouvir nada disso!

Então, parei de escrever. Porque escrever estava me fazendo pensar nessas coisas chatas. Só escrevi esta parte do post porque, do ponto de vista terapêutico, julguei ser necessário pelo menos tentar falar sobre esse sentimento para não me sentir ainda pior. E eis aqui a parte "alegre" de um texto ingênuo (será coincidência que os alegres são sempre ingênuos?), que, por ser um registro, não chega a merecer ser esquecido:

* * *

A semana passada foi divertida porque recebemos visitas do Brasil. Estavam em Paris dois professores que conheço e dos quais gosto muito. A presença deles me fez bem: durante alguns dias, era como se a distância oceânica que me separa do Novo Mundo, bem como a estranha sensação de isolamento, de alguma forma diminuíssem.

Na quinta-feira, inventávamos caminhos à gauche et à droite do Sena, andando do Quartier Latin à Opéra, passando depois pelo Marais até chegarmos à Place de la Concorde, e só voltei a sentir saudades de São Paulo bem tarde da noite, quando cheguei à Maison du Brésil e repeti o rito diário de entrar sozinho em meu quarto. De todo modo, aquele havia sido um dia feliz: para além da alegria de poder apreciar lugares belíssimos como a Igreja de Madeleine e o Hôtel de Ville, o mais curioso foi perceber que, apesar de termos visto os lugares de sempre (acho que, com quase três meses de Paris, já posso falar assim), a companhia no passeio era nova, e isso fazia toda a diferença.

O almoço havia sido no restaurante Le Procope. É o mais antigo café de Paris - funciona desde 1686 - e ali estiveram homens como Rousseau, Voltaire, Danton, Robespierre, Benjamin Franklin... Fiquei emocionado de estar naquele lugar, que, após mais de 300 anos, ainda preserva uma decoração típica do século XVIII. Era como fazer uma viagem no tempo. Mas, mais do que isso, era uma viagem emocionante porque eu não a fazia sozinho. Por alguns instantes, esqueci-me das coisas que não gosto da França e dos franceses e apenas aproveitei a agradável companhia dos amigos, que, como mágica, tornavam aquele lugar especial.

Na verdade, até me comportei como um civilizado: coloquei o guardanapo no colo, comi a truta que pedi segurando o garfo com a mão esquerda, bebi o vinho e a água em taças diferentes, conversei amenidades observando atentamente os modos à mesa... Acho que fiz praticamente tudo que fazem os que seguem as regras de etiqueta, e quem ali me visse não diria logo de cara que havia um selvagem comendo num restaurante chique em Paris. Só não fui vestido com roupa social porque aí também já seria demais... Mas achei muito prazerosa a experiência de passar-me por "gente", não pela situação em si mesma, é claro, mas pela companhia dos amigos ali presentes. Paris sem os amigos seria muito sem graça: seria só civilização.