sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A vida fora da vida

Quase sem querer, terminei 2010 encantado pelo Retrato do artista quando jovem, do James Joyce. A princípio, era apenas uma curiosidade literária, passatempo fútil nesses tempos de desânimo em relação à tese. Eu queria conhecer o contexto da frase que Clarice colocou como epígrafe de seu livro:

"Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida."

O momento que mais me encantou (e a palavra é exatamente essa) foi justamente aquele em que essa frase do coração selvagem aparece: é o momento da conversão de Stephen Dedalus, que, em sua consciência, se afasta da família, da pátria e da religião para se tornar artista. É quando, olhando o mar em adoração, ele avista a garota que, por alguns instantes, torna-se sua obra de apreciação estética. É nessa "epifania", ou ainda, nesse "encantamento do coração", nas palavras do próprio autor, que Dedalus descobre a solidão feliz do artista, que recria a vida fora da vida.

"Her image had passed into his soul for ever and no word had broken the holy silence of his ecstasy. Her eyes had called him and his soul had leaped at the call. To live, to err, to fall, to triumph, to recreate life out of life! A wild angel had appeared to him, the angel of mortal youth and beauty, an envoy from the fair courts of life, to throw open before him in an instant of ecstasy the gates of all the ways of error and glory. On and on and on and on!"

"A imagem dela entrara na alma dele para sempre e nenhuma palavra havia quebrado o sagrado silêncio de seu êxtase. Os olhos dela o tinham chamado e a alma dele atendera prontamente ao apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida fora da vida! Um anjo selvagem havia aparecido para ele, o anjo da juventude e da beleza mortais, um enviado das cortes justas da vida, para escancarar diante dele num instante de êxtase os portões de todos os caminhos do erro e da glória. Adiante e adiante e adiante e adiante!"

Pouco entendo de Joyce e só li o Retrato muito superficialmente. Além disso, acho que não concordo com a teoria estética defendida por Dedalus. No entanto, não é nada disso que importa. O que importa é que terminei o ano encantado, encantadíssimo... E o que é mais curioso: não foi na França que encontrei as palavras mágicas! De todo modo, percebi que estou sempre em busca de palavras que encantem a vida... E já sei que não é na tese que elas aparecerão. Mas isso não faz diferença. O fim se aproxima, sinto-o, e por ora, quero pensar apenas em meu pequeno réveillon na Maison du Brésil. O ano que chega, talvez ele seja mesmo "feliz" como dizem por aí...

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sobre coisas que passam


O Natal passou. Passou como tudo na vida. E o ponto é exatamente esse: tudo passa. Tudo, tanto o que queremos que passe quanto o que gostaríamos que fosse eterno. É um pouco difícil de explicar, talvez seja chocante para alguns, mas o que sinto neste pós-Natal em Paris é - isso hoje já não dói dizer - uma profunda indiferença. Mesmo tendo sido um Natal bem diferente, talvez único para mim, não consigo deixar de sentir que o que passou é indiferente, que foi apenas mais um momento único, especial, inesquecível etc. dentre tantos momentos únicos, especiais, inesquecíveis etc. que passam na vida.

Sei que, a rigor, o que vivi este ano não pode ter sido indiferente. Afinal, foi um Natal em Paris! Quantos outros passarei por aqui? Talvez mais nenhum. A todo instante sou lembrado do privilégio de morar neste lugar: a capital das luzes e da civilização. Sinto todo o peso de ser um aspirante ao mundo da filosofia acadêmica, para quem esse ambiente onde se respira cultura 24 horas por dia deveria ter muito significado, muito valor... Talvez eu devesse achar este Natal que acaba de passar o mais feliz de toda minha vida...

Sim, talvez. Mas, sinceramente, não penso que seja nada disso. E para ser bem sincero, desejei que este Natal passasse bem rápido, que acabasse logo, como se assim eu pudesse abreviar minha tristeza e me sentir melhor. E o Natal passou, talvez não tão rápido quanto eu gostaria, mas passou. Eu deveria até ter ficado feliz por causa disso. Mas não fiquei, porque sei que o Natal teria passado mesmo que eu tivesse desejado que ele durasse para sempre. E, nesse caso, eu me consolaria tentando me convencer de que, apesar de ter passado, foi um momento único, especial, inesquecível etc., e que eu deveria ficar feliz por isso.

No fundo, eu sempre deveria ficar feliz por qualquer coisa. Porque há sempre um ponto de vista positivo para tudo. Sei disso. Ainda mais nessa época do ano, quando costumo receber muitos cartões eletrônicos com mensagens cheias de otimismo, que me estimulam a ver as coisas positivamente, e que me lembram o tempo todo que eu deveria me sentir feliz... De um certo ponto de vista, é claro.

Mas o que eu sinto de fato, que nem sempre corresponde àquilo que eu deveria sentir, é algo meio absurdo nesses tempos em que os livros de auto-ajuda fazem tanto sentido para tanta gente. No fundo, tenho medo de perder meus objetos de amor, os quais eu desejaria que nunca tivessem passado. Confesso: fico triste com a possibilidade de esquecer os amores do passado. E o paradoxo é que, se por um lado aquilo que amamos é inesquecível, por outro, tudo que passa - tudo mesmo, até o que amamos - se torna necessariamente esquecível. Para ser coerente, então, deveria me sentir ao mesmo tempo feliz e triste.

A Bíblia afirma que "o amor não passa" (I Coríntios 13:8). Não acredito. Se o amor não passasse, não precisaríamos nos lembrar dele. É preciso lembrar-se sempre do amor para amar. Pois tudo se passa como se, sem memória, o amor simplesmente não pudesse existir. Para amar, é preciso dizer que aquilo que amamos é "inesquecível", ou seja, que continuaremos nos lembrando do amor mesmo que ele seja coisa do passado.

Pois se o amor não for passado, isto é, se não submetermos o objeto amado à dura prova do esquecimento, como poderíamos amar? Mas, ao mesmo tempo, que prova mais dura é essa! Porque, diante do esquecimento, o amor corre o risco de não sobreviver, deixando em seu lugar apenas indiferença... Afinal, tudo passa, tudo tende ao esquecimento, e tudo que esquecemos se torna indiferente, mesmo que algum dia tenha sido para nós inesquecível. Para podermos lembrar, é preciso que também possamos esquecer. E, no fim, o amor é como disse um poeta português: "tão contrário a si".

Lembrei-me de "Hiroshima mon amour" (1959). Filme que amo do Alain Resnais, e que, só por isso, considero inesquecível. A história é sobre o lugar do amor entre a memória e o esquecimento. As falas foram escritas pela Marguerite Duras, e uma delas tem tudo a ver com o que pensei para escrever este post:

O homem (Lui) diz para a mulher (Elle): "Daqui a alguns anos, quando eu tiver esquecido você e outras tantas histórias como esta que, ainda pela força do hábito, acontecerão, eu me lembrarei de você como do próprio esquecimento do amor. Eu pensarei nesta história como no horror do esquecimento. Eu já sei disso." (Marguerite Duras, Hiroshima mon amour. Paris: Gallimard, 1960, p. 105)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Bricolage


De tanto ir à Biblioteca Nacional pelo mesmo caminho, já não vejo mais o próprio caminho. É como se, nos 25 minutos do trajeto de RER e metrô até Quai de la Gare, os mesmos lugares que há poucos meses cativavam tanto meus olhos tivessem deixado de existir. Pura ilusão, é claro. Sei que os lugares continuam lá, e que agora eles se escondem de mim, misturando-se ao "invisível das coisas comuns", a tudo aquilo "que não vi" e que só percebo "tarde demais". Porque, como disse a poetisa, "os olhos deixam de ver o que estão vendo sempre".

Mas... Hummmm... Já ouvi isso antes. Seria um "eco"? Quem sabe, "auto-análise"?! Ou, simplesmente, confissões... Acho que, para variar, estou contando mais uma vez a "mesma história". Variações sobre o mesmo tema.

Ora, sei que "o mesmo não é o mesmo, jamais". E que bastaria "um empenho de rememoração constante" daquilo que não posso esquecer para poder lidar com "souvenirs que obscurecem à medida que o tempo passa". Poderia então construir uma "representação da memória" que me ajudasse a não sentir "saudade daqueles primeiros momentos de descoberta do amor". Faria tudo com a certeza de que "as estações não se repetem" porque "cada fato é singular" e "os brotos da primavera despontarão pela primeira vez em toda a história". Poderia até voltar a "ver e rêver o mesmo como se fosse novo de novo e de novo...". Poderia voltar a amar, e depois, amar "de novo... e sempre".

Porém, percebo que até isso é uma "repetição". Para falar "novo de novo", sou forçado a recorrer a "ecos de discursos de outros tempos e lugares". E aí me lembro que, em Paris, tudo me parece "assustador". Eu "sinto o medo", sobretudo dos mortos, e tudo que faço é fugir: "vivo fugindo de fantasmas". Além disso, estar em Paris me faz sentir "culpa de ter ido longe demais". Daí que, às vezes, eu precise enfrentar a "vontade de voltar para o Brasil", muito embora eu saiba que "não poderia escapar de mim mesmo e, por conseguinte, de toda a realidade que, por alguns instantes, eu gostaria de esquecer". Não adianta "fechar os olhos", pois os fantasmas, esses mortos dos quais fujo, na verdade "habitam todos dentro de mim".

"Ainda não sei quem sou". Sinto-me "estrangeiro", "selvagem", "triste". Mas talvez não seja nada disso. Afinal, são tantas as minhas incoerências, minhas "descontinuidades"... No fundo, sou apenas alguém que insiste em montar o próprio "quebra-cabeça", mesmo sabendo que as peças "não têm ligação necessária entre si". Por isso, "a cada movimento tenho medo de descobrir que a tão desejada cadeia invisível responsável por amarrar as coisas soltas de meu universo na verdade não existe". Mesmo assim, "deslizo, continuo, continuo... Sempre, sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim". Como se eu ainda fosse "um crente de verdade", "como se eu confiasse num final feliz".

O Natal se aproxima. Este ano, será absolutamente novo para mim, por causa da neve. Neve e Natal: nunca vi combinação mais "bela e triste". No entanto, tenho a impressão de já ter visto esse filme antes. É como se fosse "uma surpresa que, na verdade, eu já conhecia de antemão, mas que, nem por isso, deixará de ser nova para mim". E, em meio às velhas novidades, vejo aquelas que nos fazem "acreditar em coisas que não existem". Refiro-me aos encontros (ou desencontros?) com "seres iluminados e iluminadores", como poetisas e borboletas, que possuem a sabedoria das palavras e dos gestos mágicos que encantam e enchem de sonhos o "vazio infinito que sinto existir dentro de mim".

domingo, 12 de dezembro de 2010

Cinco meses


"[...] E aí vem aquele sentimento de que tudo o que eu poderia dizer já foi dito, de que agora tudo que eu disser será repetição, como ecos de discursos de outros tempos e lugares. Como se só o que restasse fossem repertórios de palavras usadas, que nunca mais serão pronunciadas com a magia da primeira vez."

Melhor, então, que o eco seja de Clarice:

"Ando, deslizo, continuo, continuo... Sempre, sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim. - Onde foi que eu já vi uma lua alta no céu, branca e silenciosa? As roupas lívidas flutuando ao vento. O mastro sem bandeira, ereto e mudo fincando no espaço... Tudo à espera da meia-noite... - Estou me enganando, preciso voltar. Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. É porque a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma." (Clarice Lispector, Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, pp. 71-72)

sábado, 4 de dezembro de 2010

Bela e triste


Nem o céu cinzento e a neve no chão, nem a falta de sol e o frio em meu rosto, nem mesmo o mau humor e o mau odor dos franceses (e pensar que reclamávamos deles no verão!) conseguem deixar Paris menos bela.

Mas não é a beleza das imagens que eu via nos cartões postais. Ao vivo, Paris no fim de outono é diferente. Bela, sim, mas triste. Como aquela beleza do Madrigal Melancólico de Manuel Bandeira:

A beleza, é em nós que ela existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza

Novamente, a questão que me incomoda: se eu fechasse os olhos, Paris continuaria bela? *

Ora, quero crer que sim. Afinal, bom seria se sua beleza não fosse tão frágil e tão incerta a esse ponto, diante de um simples olhar. Poderia dizer sem vê-la: continuas bela! Ou talvez precisasse mentir... De todo modo, a despeito do que eu visse ou deixasse de ver, se Paris for bela, também será triste.

Porque o poeta disse que a beleza é triste. Se não fosse triste, não seria beleza. Que tristeza... Mas, enfim, é a vida! E a vida, ela é assim. Por isso é vida. Por isso é bela...

Explicava para meus amigos que escrevo sempre que estou triste. Mas faltou dizer que não é só por causa da tristeza. Não escrevo para ficar mais triste. Na verdade, escrevo porque gosto das coisas belas, ainda que, justamente por serem belas, elas me entristeçam tanto.

Só acho difícil quando a beleza é muita. Porque nessas horas, fico sem saber o que dizer. Emudeço, por causa da beleza, por causa da tristeza, sei lá por quê. Paris no frio, com esse cenário meio glacial (e surreal), é emudecedora, pelo menos, para mim.

E aí vem aquele sentimento de que tudo o que eu poderia dizer já foi dito, de que agora tudo que eu disser será repetição, como ecos de discursos de outros tempos e lugares. Como se só o que restasse fossem repertórios de palavras usadas, que nunca mais serão pronunciadas com a magia da primeira vez.

Ou ainda, como se, diante da beleza e da tristeza de Paris, não houvesse mais nada a dizer depois do que eu já disse, mesmo que eu quisesse falar - poética e magicamente, pensando aqui e estrangeiramente - do céu cinzento, da neve no chão, do frio de vento que sinto no rosto e também no coração.