domingo, 30 de janeiro de 2011

Outra Paris

Parei de escrever, é verdade. E não foi por falta de tempo, nem de vontade, nem de tristeza. Aconteceram coisas, senti necessidade de contá-las, comecei três postagens, não consegui terminar nenhuma. Só depois entendi que estava em busca do indizível...

É como se houvesse em mim uma espécie de descompasso, um desencontro interior talvez, entre o desejo de falar e as palavras mesmas. Uma lacuna de minha memória escrita, digamos assim, onde se perderiam não apenas as palavras de meu desejo, mas também o próprio desejo, necessariamente. Pois muito embora eu queira escrever, jamais me contento com o que já foi dito, e, à medida que se acumulam as frustrações dessa busca inútil por palavras que não existem, mergulho progressivamente no silêncio em relação à vontade de narrar o período atual de minha história.

O que não deixa de ser paradoxal, pois é como se eu desejasse esquecer algo que eu mesmo desejaria considerar inesquecível. Ou ainda, como se eu não quisesse guardar em minhas lembranças os registros textuais de momentos marcantes, talvez únicos, com os quais um dia eu tanto sonhei e que sem dúvida me constituíram. Como se eu quisesse esquecer um grande amor...

Pelas coisas que venho dizendo, há quem pense que odeio este lugar. Mas não é nada disso! Sei que morar aqui é um privilégio. Além do mais, acho Paris uma cidade encantadora, seja pelo sentimento de estar vivendo uma ficção ao caminhar pelas ruas daqui, seja porque meus interesses pessoais e acadêmicos encontram-se, apesar dos pesares, profundamente ligados à chamada "civilização" francesa e, sobretudo, à "civilidade" dos parisienses. No entanto, tenho a firme convicção de que aquilo que busco de "essencial" está para além de tudo isso. Não é a exposição do Monet no Grand Palais nem os estudos na BnF e na Sorbonne que vão fazer com que eu me sinta feliz.

Daí a razão de eu dizer que em mim não há uma disposição - isto é, um estado de espírito - para apreciar e aproveitar toda essa riqueza cultural que me cerca e me oprime em Paris. Pelo menos, não em minha condição presente. Pensei em voltar para o Brasil, claro. Diversas vezes, aliás. Mas, ao mesmo tempo, sei que não posso fugir dessa situação. Pois, como já disse, meus fantasmas moram todos dentro de mim, e eles me seguiriam para onde quer que eu fosse. Por isso, decidi fazer como alguns filósofos: fugi para meu "eu" interior, para o mundo da minha imaginação, não tanto para enfrentar os mortos que me assombram, mas muito mais para tentar me encontrar, para me reinventar... E eis que comecei a pensar numa outra Paris.

Quero voltar aqui um dia, quando essa espécie de luto (ou será melancolia?) tiver passado. Quero reencontrar Paris, mas com outros olhos, com outro espírito, amando talvez para, quem sabe, mudar a visão tão deprimente que tenho deste lugar. Porque ainda que Paris continue a mesma de sempre, eu não serei o mesmo, e, justamente por isso, gostaria que ela aparecesse diferente para mim. Bela, mas não triste. Quero rêver Paris e me sentir feliz aqui. Porém, não quero a Paris dos outros: quero a minha, a Paris dos meus sonhos. E então, sem tristeza, poderei achá-la linda como nunca antes, como se fosse a primeira vez... de novo. Porque quero muito acreditar que o novo não pode ser dito a não ser nas repetições, de novo, de novo e de novo, sempre.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Seis meses

"L'Âge mûr", Musée Rodin, Paris
A foto é um detalhe de A idade madura, de Camille Claudel, no Musée Rodin em Paris. Essa escultura fala, entre outras coisas, de momentos de transição na vida, quando abandonamos o que nos segura num tempo e nos entregamos ao que nos espera num outro. Momentos de liberdade, é claro, mas também de resignação e dor, como tantos pelos quais somos obrigados a passar por força das circunstâncias. Absurdamente linda, mas triste, muito triste...

Debussy, Claire de Lune
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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

No princípio era o Silêncio


"Il y a toujours quelque chose d'absent qui me tourmente."

"Há sempre algo de ausente que me atormenta", escreve Camille Claudel a Rodin em 1886. Intriga-me o que poderia ser essa ausência. Talvez fosse algo que a própria escultora não pudesse dizer. Ausência de palavras... Hoje, depois da aula na Cité des Arts, passei em frente ao número 19 do Quai de Bourbon, onde Camille morou e trabalhou de 1899 a 1913, quando então foi internada.

Lugar silencioso aquele. Os passantes não faziam barulho, andavam todos quietos, sérios, alguns até meio cabisbaixos. Era como se o silêncio ali fosse um sinal de respeito, de reverência, em consideração a tanta tristeza e solidão que ficaram gravadas com amor e loucura nas paredes daquele endereço. Diante da ausência de Camille, absolutamente nada a dizer.

Foi em silêncio que comecei o ano. Andei refletindo sobre algumas coisas que amigos me disseram. Mas só refletindo. Não estava pensando em respostas para eles. Pois sei que, no fundo, qualquer coisa que eu dissesse seria indiferente, inútil... Ou pior, poderia aumentar ainda mais os mal-entendidos. É a lição lógico-filosófica que aprendi com Wittgenstein: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar."

Disseram-me, por exemplo, que sou "pessimista", que o que escrevo "é complicado", que me preocupo "demais em querer sentir algo realmente especial", que pareço "desesperançoso" e em "estado de letargia", que sou um "bicho do mato", que sou "cínico", e até que eu estaria passando por uma "mudança de orientação filosófica". Sinceramente, acho que não é nada disso. Até senti vontade de me explicar, vontade de falar... Mas penso que falar mais do que eu já falei, depois de ter dito tudo o que eu poderia dizer, simplesmente não faria sentido.

Este blog era para ser uma espécie de caderno de campo, onde eu registraria as impressões do estágio que faço em Paris. Mas ele mudou um pouco e acabou ficando algo parecido com meu diário, inclusive no tom melancólico. Acho que a Helô está certa: eu escrevo com o coração. O que não deixa de ser um trabalho de tradutor. Sim, tradução, a partir do original em sentimentalês, língua que se fala não na Paris dos blocos de pedra construída por Haussmann, mas na Paris imaginária que encontrei dentro de mim.

Não desejava muito: só queria dizer meus sentimentos a um outro, esperando que esse outro me compreendesse... Mas agora percebo que isso talvez não seja possível. Porque falar sobre sentimentos é como conversar sobre religião: ninguém se entende e as discussões simplesmente não fazem sentido. O sentimento é como o dogma - ambos dizem respeito a "verdades" particulares que possivelmente ninguém mais poderá conhecer, ou que, mesmo que sejam conhecidas, nunca serão exatamente as mesmas. Isso me lembra a lição mais importante que aprendi nos tempos do curso de teologia: só Deus sabe o que se passa no coração de cada pessoa.

Mas agora, sem Deus, o que fazer com o desejo de dizer o que sinto? Quero dizer algo, quelque chose, mas dizer para quem? E, mais ainda, para quê? É preciso buscar um sentido, uma salvação. O salmista diz: "Se o Senhor não me socorresse, em breve a minha alma habitaria a região do silêncio." (Salmo 94:17). Perder-se no silêncio, salvar-se na Palavra. No princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus, escreve são João.

Porém, quando a Palavra não nos diz mais nada, quando ela mesma é oca de significado, quando não há mais nenhum encanto nas frases que ouvimos sobre sabe-se-lá-o-quê, resta-nos apenas o sentimento de estarmos perdidos no meio do vazio do silêncio, trazendo dentro de nós um outro vazio: o da ausência do que dizer. Il y a toujours quelque chose d'absent qui me tourmente... Ausência que não deixa de ser uma prisão, cela solitária, onde não podemos mais dizer o que quer que seja. Mas uma prisão onde não estamos mortos e da qual desejamos sair um dia em busca de algo que nos escapa, sempre. Desejo de encontrar o nome daquilo que nos falta. Isso até hoje não conheço ninguém que tenha dito tão silenciosamente quanto Clarice:


"No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito - imagino já sem lucidez - minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Sem viver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e limitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome." (Clarice Lispector, Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 73-74)